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“O DIA QUE TE CONHECI” – Apaixone-se [25 F.RIO]

Em muitos âmbitos, O DIA QUE TE CONHECI é um romance. O sentimento pode ser percebido imediatamente na relação entre os protagonistas, mas não apenas na dramaturgia da trama. O mais recente trabalho da produtora mineira Filmes de Plástico também estende sua paixão à cidade de Contagem e ao próprio fazer cinematográfico. A simplicidade da narrativa não apaga a profundidade dos temas discutidos, dos relacionamentos, da vida comum e da assinatura autoral de André Novais Oliveira.

(© Filmes de Plástico/ Divulgação)

Na história, Zeca tenta levantar todo dia nas primeiras horas da manhã para pegar o ônibus e ir trabalhar. Ele precisa acordar cedo porque o trajeto de sua casa em Contagem até a cidade vizinha de Betim, onde trabalha como bibliotecário em uma escola, leva uma hora e meia. Acordar no horário está cada vez mais difícil, o que prejudica seu trabalho. Em um dia em que está novamente atrasado, Zeca conhece Luisa e passa algumas horas com ela.

O estilo da narrativa de “O dia que te conheci” guarda muitas semelhanças com “Temporada“, longa metragem anterior de André Novais Oliveira. A câmera do cineasta se interessa pelo cotidiano prosaico da vida urbana, tornando os eventos mais corriqueiros extremamente cinematográficos. No filme de 2018, a protagonista vivenciava uma mudança de casa, de trabalho e de cidade como símbolo para a alteração de suas escolhas de vida. Já nesse filme de 2023, os encontros imprevisíveis de um dia tumultuado criam um vínculo afetivo que confortam duas pessoas fraturadas e, ainda assim, encantadoras. O que se vê em tela não é, necessariamente, extraordinário no sentido de conter acontecimentos grandiosos, reviravoltas impactantes ou recursos visuais chamativos. A trama se desenvolve através de sequências comuns de fácil identificação e reconhecimento, como a dificuldade de levantar da cama às seis e vinte da manhã, os contratempos no transporte para chegar ao local de trabalho, os problemas com os quais precisa lidar na escola e as interações com uma colega na volta para casa.

A espontaneidade das situações cria uma experiência tão genuína que o espectador pode se sentir diante de uma janela aberta para o mundo tal qual ele é. A sensação de realismo vem, sobretudo, da construção e da dinâmica entre Zeca e Luisa, os dois personagens que concentram as atenções da narrativa ao longo de pouco mais de uma hora. É possível perceber que Renato Novais e Grace Passô seguem as indicações do roteiro de André Novais, os ensaios realizados pelo diretor no set e os improvisos propostos pelos dois atores. Existe uma autenticidade na composição dos intérpretes que garante um despojamento na maneira como interagem, criam uma relação de crescente intimidade e comentam sobre a própria vida. Sendo assim, os momentos compartilhados por eles evoluem de uma notícia ruim dada por Luisa a Zeca, uma carona no final da tarde, uma conversa amistosa sobre amenidades (por exemplo, o horário de maior engarrafamento) até a troca de informações pessoais sobre cada um deles. Ao longo do trajeto de Betim para Contagem, os diálogos aprofundam nas vulnerabilidades de ambos e na naturalidade de falas que parecem fluir como um encontro da vida real.

Da mesma forma que as conversas possuem um tom descontraído em seu início, passam também por assuntos complexos que tanto mantém a naturalidade de seu surgimento quanto apresentam elementos adicionais para os protagonistas. Logo, comédia e drama se equilibram muito bem ao romance que está sendo construído. O humor está presente, por exemplo, na insistência de Zeca para seu colega acordá-lo cedo, no motivo da briga de Luisa com uma amiga e nos primeiros flertes da mulher para o homem. Ao mesmo tempo, a narrativa aborda a ausência de figuras negras na escola a partir da conversa que eles têm no carro para criticar o local de trabalho. Nesse ponto, começa a existir uma cumplicidade entre os dois, ou seja, a busca por uma sintonia, uma conexão entre pessoas que reconhecem as violências de recorte racial que sofrem. Além disso, Zeca e Luisa trocam experiências e saberes sobre o uso de medicamentos controlados para depressão e ansiedade, possibilitando ao filme discutir o crescimento das doenças psicológicas na atualidade. Mesmo em assuntos com essa natureza, André Novais, Renato Novais e Grace Passô conseguem extrair um humor que não é ofensivo.

Conforme o tempo fílmico da narrativa avança praticamente em um único dia, outras paixões se iniciam e se desenvolvem. A primeira que logo se sobressai é em relação aos cenários por onde os personagens transitam, uma característica comum aos outros projetos da Filmes de Plástico. “Temporada” e “No coração do mundo“, por exemplo, são títulos que fazem a cidade de Contagem se tornar um personagem à parte que influencia todos que estão ali. Dessa vez, não é somente Contagem que recebe papel de destaque porque Betim, outra área da região metropolitana de Belo Horizonte tem grande valor para os sentimentos espontâneos experimentados com a obra. O design de produção realça as locações comuns das duas cidades como parte essencial dos arcos dos personagens, como a passarela por onde Zeca e outro rapaz passam para comprar um pastel e voltar a tempo para pegar o ônibus, o trecho de rua movimentado onde bares e lanchonetes reúnem muitas pessoas por onde Luisa e Zeca andam e o muro ao lado da escola com ilustrações de personalidades como Michael Jackson e Malcolm X.

O romance se completa com o cuidado que o diretor tem com a construção visual dos planos. Em tese, a decupagem poderia ser vista como muito simples e até básica por investir na abordagem realista que também permeia as situações da trama e a atuação do elenco. No entanto, a simplicidade pode ser profunda em termos de sentidos e sensações porque cria uma unidade coerente e expressiva. André Novais concilia os planos sequência e os quadros estáticos em momentos específicos do percurso feito por Luisa e Zeca por Minas Gerais. Quando o bibliotecário conversa com a mãe de uma das alunas, o plano aberto se mantém sem cortes e a câmera é posicionada fixa sobre os personagens, o que enfatiza a presença do muro no cenário. Mais adiante, o longo plano sem cortes que segue o casal pelas ruas de Contagem à noite aprofunda calmamente a relação de intimidade que se constrói entre os dois. E quando novamente a escolha é por um quadro estático, a ideia é deixar a câmera próxima da ligação que se forma entre Luisa e Zeca enquanto conversam sobre os sintomas psicológicos que ambos têm.

Após pouco mais de uma hora acompanhando os protagonistas, cidades mineiras e as escolhas formais de André Novais, as sensações se multiplicam para o público. É possível rir, emocionar-se, divertir-se, desfrutar do prazer pela simplicidade do cotidiano, envolver-se com as dores dos personagens, sentir empatia por eles e torcer pelo romance. Como então não se apaixonar também por “O dia que te conheci” em função da experiência crescentemente prazerosa que é vê-lo e reconhecer toda sua humanidade? Quando o dia amanhece e o tempo fílmico da narrativa avança mais um pouco, o espectador já foi fisgado e o interesse por Zeca e Luisa já fazem com que os detalhes mais simples de suas vidas sejam apaixonantes. É o caso da trivial ida à padaria nas primeiras horas da manhã.

*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).