Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“O EXORCISTA” (1973) – Paradigma do terror

Quando se fala em filmes sobre possessão demoníaca e exorcismo, certamente O EXORCISTA é o grande paradigma. Lançado em 1973 e cercado de lendas urbanas (falecimentos e acidentes nos bastidores, inspiração em evento real etc.), o longa pode parecer obsoleto e inofensivo hodiernamente, mas sabidamente deixou muitas pessoas aterrorizadas por vários anos.

Georgetown, Washington. Mesmo precisando se dedicar às gravações de seu novo filme, a atriz Chris MacNeil é uma mãe afetuosa que cuida sozinha da sua filha pré-adolescente, Regan, depois que o pai da menina a deixou de lado após o divórcio. Quando Chris percebe que Regan apresenta um comportamento mais agressivo, resolve levá-la ao médico. Porém, o que a filha precisa não é de um médico, mas de um padre.

(© Warner Bros. / Divulgação)

A direção de William Friedkin se tornou exemplo para os demais diretores de terror com o passar dos anos. O filme tem provavelmente um solitário jump scare (na cena do fogo no sótão), utilizando com maior intensidade ferramentas de sugestão no aspecto sonoro (os barulhos no sótão) e no imagético (a silhueta do demônio ao lado da porta do quarto escuro). Sem evitar o gore (sangue saindo pela boca, cuspe de gosma, procedimento médico invasivo etc.) e utilizando efeitos práticos (como a icônica cabeça virando), Friedkin é genial para chocar e aterrorizar a plateia. Se hoje os espasmos de Regan, com gritos, obscenidades e movimentos corporais surpreendentes, não deixam o espectador indiferente, em 1973, evidentemente o público tinha uma reação bem vívida.

O exorcista” tem sequências verdadeiramente impressionantes – e esse é um adjetivo que define bem a produção -, destacando-se aquelas em que o exorcismo efetivamente ocorre, com ritmo deliberadamente lento. O filme é longo (mais de duas horas) e a narrativa tem considerável peso dramático (um enredo sobre uma menina possuída por um assustador e perigoso demônio), tornando-o um pouco cansativo. Contudo, mesmo essas características são coerentes com a proposta, mais focada na ambientação do que com uma sequência dinâmica de eventos. Por exemplo, mais interessante que o fato da chegada do Padre Merrin à casa de Chris é a preparação para seu ingresso no recinto – saindo do táxi com apenas uma maleta de mão e iluminado por um feixe de luz que corta a intensa neblina -; melhor que pontuar a transformação de Regan é destacar elementos periféricos, como a temperatura do quarto (percebe-se que fica gelado em razão do vapor de água saindo da boca das outras personagens) e a maquiagem (pele que vai empalidecendo, cicatrizes, lábios secos etc.).

O design de produção tem grande parcela de responsabilidade pela ambientação penetrante que “O exorcista” tem. Nas cores, o vermelho tem presença constante para simbolizar a forte presença do demônio (por exemplo, na primeira vez em que o Padre Merrin vê a estátua, enxerga seu contorno na contraluz em um céu avermelhado). Em sua primeira aparição, Chris surge de pijama branco perolado, simbolizando seu estado de pureza e paz (mesma cor das paredes de seu quarto), porém em seguida ela coloca um roupão de cor pêssego como indicativo das matizes mais escuras que o vestuário passará a adotar. Não por outro motivo, quando faz uma festa em casa, veste-se em tom azul celeste, como se não tivesse os problemas que tem tido com a filha (tranquilidade que se esvai quando esta aparece). É interessante, ainda, perceber que Chris usa acessórios para se esconder (lenço no cabelo, óculos escuros, luvas) mais ao final, como se estivesse envergonhada pelo que tem passado.

Na perspectiva sonora, além de icônica música de mistério, o longa conta com o sombrio desempenho de Mercedes McCambridge para fazer a grave e rouca voz do demônio – que pouco lembra a voz doce e aguda de Linda Blair, responsável por interpretar Regan. A despeito de dois ótimos trabalhos de atuação – Ellen Burstyn como Chris e Max von Snydow como o Padre Merrin -, é o roteiro de William Peter Blatty (baseado em seu próprio livro) que ganha os holofotes (ao lado da direção, é claro).

É verdade que o texto contém lacunas (Regan foi possuída por mexer no tabuleiro? Nesse caso, por que a mãe não sofreu do mesmo mal? Quem é Capitão Howdy?), todavia elas acabam sendo brechas para que o espectador atribua significado à obra. Em interpretação literal, Regan foi possuída por Pazuzu. Entretanto, o texto dá margem para inúmeras interpretações mais profundas e igualmente sólidas. Na ótica do Padre Karras (Jason Miller), “O exorcista” é a história de alguém motivadamente cético (pela sua formação) e entristecido (em razão do que viveu com a mãe) que é levado a enfrentar a própria descrença. Diversamente, do ponto de vista de Chris e Regan, “O exorcista” é uma grande metáfora para o ingresso na adolescência e a dificuldade que têm os pais em lidar com essa transição. Simbolicamente, a menina não estaria apresentando “comportamento estranho” pela possessão, mas pela fase de sua vida (o que justifica o palavreado, as mudanças físicas e mesmo a agressividade).

Sem eliminar quaisquer outras possibilidades interpretativas, “O exorcista” se torna mais intrigante justamente pelo exercício de atribuir-lhe significado. É isso que torna a obra tão rica. Afinal, o filme não se tornou um paradigma do terror à toa.