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“O FUNERAL DAS ROSAS” (1969) – O padrão é não seguir padrões

Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).

Adaptação livre da tragédia grega “Édipo Rei”, O FUNERAL DAS ROSAS adota justamente a liberdade como molde estilístico. A cronologia não é exata, o realismo é dúbio, os valores destoam completamente do que se imagina para a época. Há um filme dentro do filme, há rupturas repentinas, droga e sexualidade são exploradas sem pudor. No conteúdo, o inevitável é o destino.

Eddie é a nova estrela do Genet: de todas as trans, é a que mais tem chamado a atenção do público da casa noturna, inclusive de seu dono, Gonda. O que preocupa Eddie é que Leda, a madame do estabelecimento, pode tentar prejudicá-la por se sentir ameaçada.

(© Supo Mungam Plus / Divulgação)

As tragédias gregas como a de Sófocles, dentre outras características, são marcadas por um sentimento de danação. Édipo e Jocasta ignoravam as profecias, mas seu futuro já era conhecido; “Édipo rei” é uma tragédia anunciada assim como “O funeral das rosas”. Para reduzir o apelo gráfico do sangue, a fotografia em preto e branco é bem-vinda. O filme de Toshio Matsumoto, contudo, não é mera tradução cinematográfica da peça clássica. Pelo contrário, o cineasta cria um representante da Noberu Bagu, a “nova onda” do cinema japonês, com liberdade extrema e subversão de formatos lógicos. Matsumoto distorce as noções de tempo e espaço – se Eddie está em um local em uma cena, um corte pode tirá-la de lá e colocá-la novamente, por outro corte, em outra cena. A montagem é rápida, quiçá confusa.

O sexo paira quase como uma obsessão no longa. Os minutos iniciais, similares aos de “Hiroshima, meu amor”, de Resnais, fazem com que os corpos de Eddie (Pîtâ) e Gonda (Yoshio Tsuchiya) se unam como um só. Os corpos contrastam, mas convergem. O erotismo não é tabu; mulheres trans são discriminadas por mulheres cis, mas não por homens. Gonda chupa o sangue da perna de Leda (Osamu Ogasawara) como o vampiro que se aproveita da vítima para depois descartá-la por não mais precisar dela; a madame é a representação da rainha má da Branca de Neve, literalmente perguntando se há alguém mais bela do que ela própria.

O filme se passa em Tóquio, mas tem diversos elementos ocidentais, como a referência à fábula da Branca de Neve. No Japão pós-guerra de Matsumoto, não há preconceitos, mas ampla abertura cultural, visível nos posters dos Beatles e nas músicas de influência ocidental (em especial o pop e o rock). A mise en scène rompe radicalmente com os padrões, o que parece ser resultado de importações do ocidente, como o movimento de contracultura e a revolução sexual, ambos iniciados nos anos 1960.

À frente de seu tempo, “O funeral das rosas” defende que “o amor não vê gênero”. Dentro do caldeirão de referências estão a Antiguidade Clássica (intertextualidade edipiana) e a comédia farsesca (a cena dos mictórios), o drama é o fio condutor, mas não uma bolha que separa o longa do que há fora dela. Há um filme dentro de um filme, mas o que é real? Fronteiras são relativizadas, uma diegese de primeira dimensão (o arco dramático de Eddie, um drama ficcional) tem relação contígua com uma diegese de segunda dimensão (o filme de Guevara, que é um documentário). O uso de entorpecentes dilui as cercas, faz com que as personagens fiquem cambaleantes e se submetam a um jogo erótico entre si.

O passado parece distante, mas surge como um cometa dentro da narrativa. Cenas são interrompidas repentinamente através de imagens repetidas, por vezes de terror, e sons estranhos que não são aprioristicamente compatíveis com, por exemplo, a clássica “Für Elise”, de Beethoven. “O funeral das rosas” brinca com noções preconcebidas, como em relação ao western, em que Leda e Eddie aparecem se enfrentando à moda do Velho Oeste. Os golpes ocorrem em fast forward, diferenciando-se da elasticidade temporal das cenas de uso de entorpecentes e de sexo. A obra não é estanque, nem contraditória, ela é o que é.

A ambiguidade de “O funeral das rosas” é análoga à de “Édipo rei”. Se Édipo é herói, ele igualmente vive o suficiente para ver a si mesmo se tornar vilão, da mesma forma que Eddie admite ser ferida e lâmina, vítima e carrasco. Trata-se de um filme intenso e complexo, um tornado cultural ora ininteligível, de tão confuso, ora surpreendente, de tão inteligente. Está lá a bandeira do respeito às pessoas trans, mas também estão significantes mais rebeldes e ousados inclusive para padrões hodiernos – aliás, “padrão” é a palavra que menos se aplica à obra.