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“O HOMEM INVISÍVEL” (2020) – É assim que se faz um bom remake

O problema dos remakes não é simplesmente a falta de criatividade, mas a falta de motivação que não seja o lucro. É o caso, por exemplo, da maioria dos live actions de clássicos Disney, que se limitam a aproveitar as novas tecnologias e apresentar as histórias a uma nova geração, sem inovar no que já existia ou atualizar o conteúdo da obra. Porém, não é o caso da versão de 2020 de O HOMEM INVISÍVEL.

No longa, a protagonista Cecilia foge de seu marido, Adrian, porque não aguenta mais o relacionamento abusivo. Quando tudo indica que ele definitivamente saiu da sua vida, Cecilia acredita que ele a assombra sem poder ser visto por ninguém, o que faz parte de uma vingança por ter sido abandonado.

(© Universal Pictures / Divulgação)

Leigh Whannell pega o espírito da obra original de H. G. Wells para renovar completamente a versão de 1933 (que tem uma clara referência, quando aparece um homem coberto de bandagens). A maldade do homem que se torna invisível permanece (tendo sido mantido também seu sobrenome), porém o ponto de vista passa a ser da mulher por quem ele nutre uma obsessão. O momento em que o filme é lançado reforça o quanto ele é oportuno, vez que a toxicidade dos relacionamentos afetivos é um assunto bastante contemporâneo, sobretudo no viés abordado no longa.

Ao invés de limitar-se a dar mais espaço a uma figura feminina – como a Universal fez em “A múmia” (2017) -, todo o plot é repaginado para dar o olhar de Cecilia sobre a abusividade de Adrian (leia-se, para colocar o público enxergando o ponto de vista de uma mulher oprimida por um marido abusivo). O espectador fica ao lado dessa mulher que claramente sofreu no passado recente (sem gastar muito tempo explicando isso) e que passa a sofrer de outra forma no presente. É nisso que entra o suspense, gênero que prevalece na película, que, todavia, também abraça o terror, o drama e até mesmo a ação.

Whannel se esmera no suspense e no terror, dependendo mais dos satisfatórios efeitos visuais do que de jump scares (praticamente inexistentes). O ritmo da trama é de pura tensão, explorada na corrida contra o tempo (como quando Cecilia foge), mas também, quando coerente, na lentidão do que aterroriza a protagonista (como nas pegadas no lençol). A câmera do cineasta manipula o espectador como se fosse um terceiro entre Cecilia e Adrian, como em movimentação panorâmica em um corredor (para mostrar o que pode estar se aproximando dela) ou com um excelente travelling ao redor dela – nesse caso, a mudança do over the shoulder (exibindo o que ela efetivamente vê) para o plano fechado (exibindo o que aconteceu atrás dela e que ela ouviu), em movimentação de quase cento e oitenta graus, é uma maneira inteligente para sair do óbvio (que seria um jump scare) e permitir que a atriz conduza a tensão (através das expressões faciais).

Elisabeth Moss encontra em Cecilia uma protagonista forte o suficiente para resistir ao tormento causado por Adrian e vulnerável o suficiente para sofrer em razão do “superpoder” (invisibilidade) que ela acredita que ele tem. Cecilia fica mais e mais preocupada à medida que sente a presença de Adrian, o que é compartilhado com a plateia porque ninguém mais acredita no que ela alega. O exagero da ficção (o superpoder) é uma metáfora eficaz para a mulher que sofre pelo marido opressor, de modo que sua linguagem corporal duas semanas após a fuga, traumatizada, é impecável (além da boa interação com o CGI, mais adiante).

Ainda no elenco, Moss é inquestionavelmente a melhor, embora Aldis Hodge, Storm Reid (seus amigos James e Sydney) e Harriet Dyer (sua irmã, Emily) também façam boas atuações. Michael Dorman não é muito convincente como o cunhado Tom, ao passo que a inexpressividade de Oliver Jackson-Cohen (Adrien) é incômoda. O design de som também pode desagradar parcela do público, pois a mixagem exagera um pouco em momentos-chave (como na cena da tinta no sótão). Em se tratando de sons extradiegéticos, a trilha musical é intensa em demasia (ainda que coerente) e não há coesão nos ruídos (a cena mencionada, a depender da interpretação, pode ser de arrepiar ou sem sentido).

No aspecto sonoro, “O homem invisível” poderia ser bem melhor. Imageticamente, todavia, o filme é muito bom, seja pelas escolhas de filmagem, seja pelo design de produção. A arquitetura da casa de Adrian é pouco aproveitada se considerada a duração da película, contudo o prólogo chega a ser fascinante por dividir bem a angústia (das ações de Cecilia) com a estética da residência. O local, além de exercer função narrativa no desfecho, representa bem o protagonista como alguém rico financeiramente, mas um tanto sombrio.

É do ponto de vista temático que a produção melhor se justifica. Narrativamente, a suspensão da descrença exigida é considerável e o principal plot twist pouco agrega à obra. Entretanto, considerando o caminho arriscado assumido pela trama, a existência de um único furo de roteiro (que nem é essencial e admite uma razoável sutura do espectador) é sinal positivo. Um filme ótimo, que atualiza o clássico sob um prisma pertinente e até mesmo necessário, da mesma forma que entretê e estimula a reflexão.

Em tempo: (SPOILERS) o furo de roteiro reside na forma como Adrien sabia onde Cecilia e Emily estariam (o restaurante). Sim, ele teria como saber de diversas formas: poderia estar em conluio com o motorista, poderia ter clonado o celular dela etc. Porém, é fato que o filme não mostra como ele sabia, algo simples de ser resolvido e que, ausente, constitui uma lacuna perdoável (mas, ainda assim, uma lacuna).