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“O JOGO DA INVOCAÇÃO” – Salem não merece isso

Salem é uma cidade costeira no estado de Massachussetts. Conhecida como a “cidade das bruxas”, o local entrou para a história devido aos episódios de histeria coletiva e pânico satânico decorrentes do que se julgou à época serem manifestações demoníacas em mulheres consideradas bruxas. A cultura popular absorveu essa iconografia e retratou, por exemplo, no cinema os julgamentos e as condenações dos supostos casos de bruxaria. “As bruxas de Salem“, “As senhoras de Salem” e “Os reencarnados” são exemplos de filmes que abordam o tema. O JOGO DA INVOCAÇÃO tenta evocar o imaginário em torno de Salem, mas cria uma narrativa que apela para o passado apenas para atrair um público interessado e não o integra efetivamente.

(© Diamond Films / Divulgação)

Séculos depois dos acontecimentos na cidade em questão, um grupo de adolescentes descobre uma faca amaldiçoada em uma casa abandonada. Os irmãos Billie, Marcus e Jonah se envolvem em um perigoso jogo quando este objeto libera um demônio relacionado aos eventos das “bruxas de Salem”. A entidade os obriga a participar de versões mortais de brincadeiras infantis até o momento em que realizará sua vingança. Como resultado, a família é devastada e corre o risco de ser destruída.

Os diretores Ari Costa e Eren Celeboglu partem de referências ao imaginário social de Salem e oscilam entre outras formas de contextualização para o conflito central. A narração em voice over de Natalia Dyer faz menções ao histórico da cidade para insinuar que graves acontecimentos ainda podem existir ali e nem todas as informações sobre esse passado violento foram reveladas. Nesse ponto, um flashback mostra assassinatos de vítimas muito jovens cometidos no século XVII para reforçar a possibilidade de haver relação entre passado e presente. Minutos depois, a narrativa deixa de lado o componente histórico e flerta com outras abordagens: de início, a dupla de realizadores sugere que pode existir algo sobrenatural na casa dos três irmãos por conta da maneira como a construção é filmada; em seguida, aproxima-se da premissa de maldição liberada acidentalmente ao estilo “Evil dead“. Na prática, a produção carece de foco ou de unidade, discernindo os rumos que pretende seguir ao invés de experimentar pontualmente várias ideias.

A escolha predominante gira em torno das características do filme de maldição, sobretudo objetos amaldiçoados. Consequentemente, o diálogo com a “bruxaria de Salem” se enfraquece e se resume a ser um mero artifício apelativo para chamar a atenção nos primeiros minutos. Então, a sequência clássica de eventos para esse tipo de história se desenrola. A descoberta do item suspeito é o primeiro passo, que logo se desdobra para a localização de um texto assustador sobre ele, a liberação dos efeitos iniciais da maldição, a mudança de comportamento de quem está com o objeto e a ocorrência dos primeiros atos violentos. Ao longo do caminho, Benjamin Evan Ainsworth traduz com certa eficiência os sofrimentos físicos e psicológicos de Jonah ao ser atormentado por um demônio ao levar a faca para casa e ler as inscrições na lâmina. Não se trata de uma atuação especial, mas funcional para o que o roteiro pede, algo que falta a Asa Butterfield quando Marcus está sob a influência demoníaca. O ator fica refém de muletas de interpretação para parecer uma figura assustadora, como o caminhar lento, o olhar para baixo e o tom de voz grave, que beira o humor involuntário.

Quando o demônio começa a agir para fazer suas vítimas, a sensação de um terror genérico que dispensa qualquer relação com a ambientação de Salem se intensifica. A vingança demoníaca se materializa em jogos infantis no estilo jogo da forca, esconde-esconde e pega-pega. Em cada um deles, Ari Costa e Eren Celeboglu tentam criar dinâmicas que remetem aos códigos de algum subgênero do horror. Na ordem, são estratégias visuais e narrativas que lembram o slasher, o filme de espírito e de casa mal-assombrada. No entanto, a narrativa não consegue transitar por elementos estéticos diferentes a ponto de construir uma unidade nem estabelece universos específicos para cada referência temporária a um subgênero. Os momentos típicos do slasher se tornam cenas de mortes sem criatividade, aqueles próximos de um filme de espírito falham por não saber o que fazer com o personagem Marcus e os outros similares ao filme de casa mal-assombrada não aproveitam os detalhes cênicos da casa.

Eventualmente, os cineastas até se lembram de que o ponto de partida da trama envolvia os impactos do universo de Salem no presente. Embora tal lembrança exista, não significa que volte a ter uma utilização expressiva no segundo e terceiro atos. O retorno de uma assombração que vem de períodos sangrentos é trabalhado do modo mais burocrático possível, dependendo simplesmente de flashes rápidos que trazem figuras infantis ou juvenis feridas ou prestes a atacar. Com o tempo, o uso exagerado do recurso retira qualquer efeito que poderia vir a ter, pois não funciona como jump scare, escolha criativa para um passado espectral nem como pistas explicativas para a origem do demônio. Em algumas passagens, inclusive, os flashes não escapam de uma aleatoriedade que pouco acrescenta para os eventos vistos na tela. Na virada para o último ato, a narrativa tenta impor uma ligação mais direta com Salem e faz isso através de uma sequência expositiva que se atropela entre muitas informações e uma atmosfera incapaz de gerar medo, assombro ou consternação.

A conexão entre a Salem de ontem e a de hoje para desencadear alguma espécie de história de terror permanece frágil e instável por todo o filme. Por vezes, parece ser algo essencial para o projeto, por vezes, parece ser apenas um pano de fundo para uma história paupérrima de objeto amaldiçoado. E não há recursos diferentes que consigam evitar essa impressão, nem mesmo a tentativa de criar suspense na cena de abertura antecipar um dos desfechos que apenas será explicado nos minutos finais. Cria-se uma curiosidade falsa sobre o destino dos personagens que se enfraquece ainda mais pela volta da narração em voice over feita por Natalia Dyer. Billie tenta sintetizar uma espécie de mensagem do filme ao tratar da questão dos traumas que persistem mesmo para as pessoas que não vivenciaram diretamente situações dolorosas no passado. Porém, é um desfecho que costura com muita fragilidade tudo que se viu até ali e que ainda cai na muleta de filme de horror que parece não saber como se encerrar: a ameaça não passou totalmente e pode se repetir para outros personagens. Salem, definitivamente, não merece isso.