Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“O JOGO DA MORTE” – Banalização de impulsos

Na década de 2010, jovens de diferentes países foram atingidos pelo desafio da Baleia Azul, realizado na internet em uma série de etapas de desestabilização psicológica e crescimento da violência até o último ser tirar a própria vida. A partir da década de 1980, o subgênero found footage surgiu como o estilo de “filmagens encontradas”, uma espécie de falso documentário que baseia a narrativa no registros de imagens por câmeras operadas pelos próprios personagens. O JOGO DA MORTE é um filme de terror que se apropria desses aspectos e produz um resultado tão banalizado quanto perigoso e desagradável.

(© Paris Filmes / Divulgação)

Dana perdeu a irmã de forma brutal. Ela não se conforma com a tragédia e, inicialmente, tenta convencer a polícia a investigar o que pode ter acontecido. No entanto, a investigação não avança muito e frustra a jovem. Por isso, decide rastrear os últimos vestígios deixados pela irmã nas redes sociais à procura de pistas que a levem aos responsáveis pelos incidentes violentos. Em sua busca, envolve-se com os desafios organizados por administradores da Baleia Azul. O que, a princípio, seria uma investigação para reunir provas, torna-se logo uma série de ameaças que colocam Dana e sua mãe em grande perigo.

O roteiro aborda questões extremamente sensíveis em sua trama, como depressão, suicídio e uso nocivo das plataformas digitais. Logo, a narrativa carrega, em tese, um peso dramático que poderia ser trabalhado diante da complexidade dos problemas citados e dos desdobramentos gerados. Entretanto, a abordagem empregada pela diretora Anna Zaytseva leva o filme para dois rumos problemáticos. Primeiramente, uma dramaturgia típica de mistério é criada com a intenção de resolver enigmas e elucidar todas as circunstância da morte da irmã de Dana. Em seguida, o suspense cede lugar para uma dinâmica de ação, na qual as ameaças se sucedem como sequências interessadas na adrenalina que vem da apresentação de um conflito e da necessidade de uma resolução. Como consequência, depressão, suicídio e uso nocivo das plataformas digitais são banalizados como trampolins para fazer avançar uma narrativa que se destrói continuamente.

A destruição começa a se evidenciar na maneira como Anna Zaytseva explora as possibilidades visuais da renovação do found footage através das telas contemporâneas. A narrativa em sua totalidade flui no jogo entre o ponto de vista da câmera de celular, das chamadas em vídeo e do layout de plataformas como Facebook e YouTube. O subgênero é constantemente questionado a partir da ideia de que precisa, a todo momento, justificar o fato de os personagens utilizarem câmeras em situações de perigo mortal. A obra até consegue se resolver em relação a essa pressão, pois se legitima como uma necessidade dramática para produzir provas para uma investigação. No entanto, os aspectos estéticos próprios das redes virtuais não são integrados à gramática cinematográfica e ao universo do terror. A cineasta se contenta em expor os elementos gráficos das plataformas para serem reconhecidos e tentar imprimir certo dinamismo, mas praticamente não há qualquer criatividade na combinação entre linguagens diversas. A exceção fica por conta da cena em que as imagens de uma chamada de vídeo travam por falha de conexão e é criada a incerteza sobre o que pode ter acontecido.

Simultaneamente, é possível refletir sobre os problemas suscitados pela utilização dos aplicativos virtuais na construção do ritmo da narrativa. Mesmo que não aparece em nenhuma cena, a dinâmica do TikTok parece dar o tom de tudo que se vê e se assimila da produção. À época do lançamento de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo“, desenvolveu-se o debate acerca dos efeitos do TikTok na contemporaneidade, em geral, e no cinema, em particular. Em função desse aplicativo, qualquer narrativa deveria gerar estímulos ininterruptos ainda que fossem, na prática, vazios de qualquer construção mais cuidadosa ou de sentidos mais complexos. É a sensação que se pode experimentar com “O jogo da morte“, afinal a narrativa não respira em nenhum instante para observar as consequências de algum evento ou deixar os personagens sentirem os impactos do que passam. Então, a poluição visual e a cacofonia se entrelaçam em decorrência de uma sucessão de planos, cortes, telas, ações, imagens e grafismos que pouco se comunicam entre si. Seria algo proveitoso de se fazer para afetar o espectador em nível sensorial se não fosse desorganizado, aleatório e apelativo. No fim, é a velocidade pelo velocidade sem orientação.

Quando recuamos um pouco e não cedemos à encenação acelerada, notamos que pode existir outra razão para a escolha por um ritmo que dificilmente se reduz. Não há muito a se aproveitar de um filme que cria uma embalagem repleta de adereços e distrações para que seus vazios passem desapercebidos. Sendo assim, a trama logo se rende às fórmulas genéricas que enfraquecem a discussão temática e as possibilidades estéticas. Conflitos entre mãe e filhos, romance inesperado entre personagens em um momento conturbado de suas vidas, mistério sobre a identidade dos vilões e reviravoltas com traições de quem se esperava ser um aliado são subtramas que não pareciam estar presentes na trama, mas logo se revelam parte vital. Pensando de forma mais crítica, elas não se adequam ao que se via até então e levam a um desenvolvimento que esvazia progressivamente qualquer interesse na narrativa.

O jogo da morte” testa a paciência do espectador a cada nova cena, a cada novo minuto que avança. Fazer a obra culminar em um simples “quem é o vilão debaixo da máscara?” diminui a importância dos temas sérios mencionados e desperdiça o potencial do found footage impregnado pelas telas do mundo contemporâneo. O clímax é o ápice das escolhas irritantes: um mistério que não é o foco da trama, um uso pouco criativo do recurso de uma live em tempo real com os comentários de quem a assiste, a desvalorização da questão das ansiedades dos jovens potencializadas pela exposição das redes sociais e uma sequência que se arrasta por um longo tempo até seu desfecho. No fim, o terror não comenta o presente, experimenta a linguagem nem promove experiências sensoriais. A ideia governante é acumular estímulos mesmo que signifique banalizar o que é importante socialmente e instigante artisticamente.