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“O JULGAMENTO DOS NAZISTAS DE KIEV” e “NÃO É A PRIMEIRA VEZ QUE LUTAMOS PELO NOSSO AMOR” [24 F.Rio]

(© Festival do Rio / Divulgação)

O documentário O JULGAMENTO DOS NAZISTAS DE KIEV é um desdobramento natural na carreira do diretor Sergei Loznitsa. Se ele anteriormente produziu “Process“, que abordava os julgamentos dos oponentes políticos a Stálin na URSS, seu último projeto trata de um dos primeiros processos jurídicos do pós-Segunda Guerra Mundial. Na URSS, quinze criminosos, nazistas ou cúmplices, foram condenados por violações aos direitos humanos no território da atual Ucrânia na década de 1940. O documentarista usa imagens de arquivo inéditas para reconstruir o evento em questão, incluindo declarações dos réus e depoimentos de testemunhas e sobreviventes de campos de concentração.

Não é a primeira vez que Sergei Loznitsa trabalha a violência nazista durante a Segunda Guerra Mundial, já que filmou “Baby Yar. Contexto“, que explora os antecedentes e as consequências do massacre de quase 34000 judeus em Baby Yar na Ucrânia. Também não é a primeira vez que o cineasta produz um documentário que traz poucas intervenções do realizador, pois suas obras anteriores já apresentavam essa característica. A representação fílmica dos julgamentos de Kiev não tem narração em voice over, trilha sonora ou outros recursos visivelmente inseridos posteriormente. A maior interferência do autor é a montagem que separa os trechos que pretende enfatizar e encadeia uma sequência lógica e simbólica dos diferentes momentos no tribunal. Como consequência, o filme se estrutura em torno da ideia de aquelas imagens se bastam como força histórica e dramática da narrativa a ser contada.

Por um lado, esta escolha formal pode proporcionar alguns pontos interessantes. O estilo narrativo remete aos cinejornais das décadas de 1930 e 1940 (período retratado pela obra), responsáveis por divulgar aos espectadores nos cinemas os principais fatos políticos daquele tempo, e desperta a reflexão acerca dos desafios de narrar o inenarrável, especialmente porque o horror é tamanho que tentar representá-lo poderia criar a armadilha da banalização. Por outro lado, a construção da narrativa não consegue conter o excesso de burocracia protocolar que compõe o julgamento, precisando durante muito tempo mostrar sequências em que os juízes relatam os crimes cometidos por cada réu e os próprios acusados tentam se defender. Tomadas em conjunto, as cenas podem produzir inicialmente um estranhamento no público não habituado à experiência de assistir a uma obra dessa natureza e, em seguida, carecer de um efeito sensorial maior excetuando a falta de envolvimento emocional.

À medida que o filme avança, outras possibilidades dramáticas se apresentam com efeitos diversos. Os depoimentos dos réus geram uma indignação coletiva no público conforme suas justificativas repetem a ideia de que simplesmente obedeciam ordens de superiores e não poderiam descumpri-las sob o risco de serem severamente punidos. Porém, quando Sergei Loznitsa encadeia uma série de relatos de sobreviventes dos campos de concentração ou de familiares de vítimas do nazismo, o impacto emocional se torna mais palpável. A cada nova fala, é possível visualizar os horrores da Alemanha nazista através de tantos exemplos de tortura, assassinato e destruição e até imaginar o que seria vivenciar experiências tão traumáticas. O efeito se torna significativo a ponto de espectadores durante uma sessão reagirem euforicamente às condenações aplaudindo e gritando. Ainda assim, “O julgamento dos nazistas de Kiev” custa a alcançar esse lugar sensorial mais efetivo, passando primeiro por momentos cansativos de uma burocracia jurídica repetitiva.

(© Festival do Rio / Divulgação)

O letreiro inicial de NÃO É A PRIMEIRA VEZ QUE LUTAMOS PELO NOSSO AMOR indica claramente que seu título é um paralelismo entre passado e presente. Os assassinatos de mulheres trans pouco antes das eleições de 2018 são o impulso para a produção do documentário que aborda a perseguição e a repressão à população LGBTQIA+ durante a ditadura civil-militar. O filme aborda a violência a partir do golpe de Estado de 1964, sob o discurso de proteger a moral e os bons costumes e também a construção de estratégias de resistência da população LGBTQIA+ que contribuíram para o processo de redemocratização do Brasil.

Luís Carlos de Alencar começa o documentário da forma como se poderia esperar dentro de uma abordagem convencional. O cineasta usa entrevistas de pessoas vítimas da repressão ditatorial e imagens de arquivo com recortes de jornal e documentos oficiais do regime para contextualizar a perseguição às diferentes orientações sexuais. O primeiro ato se desenvolve mostrando que a “subversão” da população LGBTQIA+ estava em um âmbito nebuloso nos anos iniciais da ditadura, pois não se encaixava propriamente em uma luta política contra o governo, mas pertencia a uma dimensão moralista de desafio à noção de família tradicional. Então, a narrativa evidencia o papel de um moralismo cristão na perseguição a todos aqueles que se diferenciassem da heteronormatividade, conformando as forças policiais e militares que combatiam espetáculos artísticos, universidades, boates e qualquer outro lugar onde se poderia buscar maior liberdade social e comportamental.

Inicialmente, seria possível supor que o documentário se concentraria na perspectiva da violência da ditadura. Entretanto, a proposta do documentarista não é abrir brechas para que se pense que os indivíduos entrevistados foram vítimas passivas que não buscaram alternativas de luta e projetos próprios. Após a contextualização inicial, Luís Carlos de Alencar se debruça sobre a organização política de gays e lésbicas através de associações espalhadas por todo o Brasil, de reuniões propositivas para a definição de linhas de ação, de publicações no formato de jornais e revistas, de propostas artísticas com teor crítico e de manifestações nas ruas com a exposição de suas reivindicações. Este recorte tem o mérito de abordar questões que, geralmente, não são tão trabalhadas por obras que tematizam o período autoritário, chegando, inclusive, a tratar do diálogo com movimentos estrangeiros, de contradições dentro próprio movimento de afirmação homossexual e de novas formas de relacionamento romântico e amoroso.

Por mais que o texto e as entrevistas chamem a atenção, o documentário também confere um poder especial à seleção das imagens. Em boa parte da narrativa, a construção visual gradualmente abre espaço para registros que enfatizem o caráter ativo da população LGBTQIA+. De início, as imagens escolhidas retratam a perseguição e o autoritarismo da ditadura em suas práticas de controle social. Com o passar do tempo, há o triunfo de outras representações que demonstram as características políticas, culturais e sociais das associações de afirmação homossexual, atingindo o auge quando contempla suas articulações com os protestos puxados pelo movimento operário iniciadas no fim da década de 1970. Eventualmente, alguns registros no terceiro ato retomam a dimensão violenta do regime, mas a ideia central se mantém: a capacidade de luta não se perde, nem no passado, nem no presente.

*Filmes assistidos durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).