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“O MAL QUE NOS HABITA” – A encarnação do niilismo

Um dos recursos mais utilizados por Alfred Hitchcock para criar suspense em seus filmes é a manipulação de informações. Em uma cena, os espectadores sabem mais do que os personagens e a tensão vem da antecipação do que pode acontecer quando uma ameaça é inserida. Pode ser o momento em que, dentro de uma casa, uma criança e um cão são colocados em uma situação mortal conhecida apenas pelo público e sequer imaginada pelos personagens que estão ali. Esse exemplo encapsula a sensação geral de O MAL QUE NOS HABITA, um filme que é terror por desacreditar diferentes valores coletivos e existenciais.

(© Paris Filmes / Divulgação)

Antes de chegar ao referido momento, os irmãos Pedro e Jimi têm suas vidas desestabilizadas em uma pacata cidade do interior da Argentina. Eles se deparam com um fato alarmante: um homem foi infectado pelo demônio e seu corpo apodrece rapidamente. A possessão coloca todos em risco porque parece ser um caso de “encarnado”, uma criatura que pode se espalhar para outras vítimas. Desesperados com as implicações da infecção, os irmãos tentam fugir do local e salvar os filhos de Pedro com a ex-esposa dele achando que ainda haveria tempo para escapar da proliferação do mal.

Quando Jimi e Pedro descobrem a primeira vítima, o filme se apresenta dentro do subgênero gore. O medo é um dos sentimentos possíveis, mas não o único nessa abordagem. Por isso, a aparição de um homem possuído gera repulsa devido às lesões em putrefação e à secreção de substâncias repugnantes. Ao mesmo tempo, a tentativa de resolução do problema do personagem causa incômodo porque seu deslocamento é dificultado pelo sobrepeso e pelo perigo de entrar em contato com ele. Nesse segmento, o terror descreve algumas instituições de maneira cética, desencadeando uma forte angústia em razão da falta de grandes referências para orientar a vida. As igrejas e a religião estariam em decadência por terem falhado quando foram solicitadas para ajudar a família do homem possuído (inclusive, repete-se a frase “As igrejas morreram”). As autoridades, em particular, e a política, em geral, abandonaram os moradores daquela cidade porque ignoraram os pedidos de auxílio e se interessavam apenas em seus próprios interesses econômicos (o vizinho dos irmãos teme que o descaso dos governantes fosse uma estratégia para tomar suas terras).

Tempos depois, a corrida para proteger os filhos do protagonista ressignifica a abordagem do terror. O estilo clássico de histórias de possessão demoníaca é combinado às características de uma trama de circulação de uma doença contagiosa. Assim, a possessão não é trabalhada como um ato isolado de um demônio que destrói sua vítima, pois as sequências na casa da ex-esposa de Pedro ilustram o início do caos da transmissão e contágio de uma espécie de “vírus demoníaco”. O medo, então, se instaura a partir da preocupação em ver o contato dos personagens com os indivíduos “contaminados”. Em paralelo, o subtexto alegórico se transforma para dar vazão à ideia de que a ameaça do demônio afeta tanto a vida de todos quanto arruína as bases de sustentação dos personagens. Além da religião e da política, a família se desestabiliza completamente, já que uma sucessão de mortes coloca fim à organização familiar e faz casais se virarem uns contra os outros, pais e filhos se atacarem e perdas trágicas se multiplicarem.

Nem todos aqueles que seriam protegidos por Pedro podem ser salvos. Ainda assim, a fuga prossegue. O que poderia ser um road movie de tons apocalíticos (o percurso logo é interrompido para se concentrar em algumas locações específicas e a desestruturação da sociedade é sugerida pela escuridão da cidade vista ao longe), torna-se um terror sobrenatural dotado de uma mitologia própria. Sara e Mirtha são personagens que apresentam as características do que o universo diegético chama de “encarnados”. Há algumas regras para enfrentar a ameaça: não usar armas de fogo, não carregar objetos próximos de um deles, não pronunciar seu nome, não usar energia elétrica, entre outras. E os demônios que possuem as vítimas e se propagam como um vírus possuem alguma relação misteriosa com crianças, por alguma razão arrastadas para seu raio de ação. Se a família, a política e a religião estão em decadência, colapso ou não inspirariam tanta confiança, a inocência da infância seria levada pelo mesmo caminho. As crianças são um alvo em potencial ou uma via preferencial para o nascimento de um mal ainda pior.

O diretor Demián Rugna equilibra as variações no tom do terror com as alegorias temáticas sem fazer o subtexto gritar em tela e sufocar a construção do horror em si. O ceticismo crescente e o rastro de destruição na jornada dos personagens não possui um viés conservador que poderia ser uma armadilha, algo como um discurso de lamento pelo enfraquecimento dos valores morais associados, por exemplo, à família e à religião. O efeito é outro, mais próximo de uma desolação geral causada por uma situação de crise que, lembre-se, parte de um vilarejo esquecido e explorado por setores econômica ou politicamente poderosos. Como o terror pode representar os medos coletivos de uma sociedade em dada época, por que não pensar tal desolação como uma consequência das sucessivas crises econômicas na Argentina? Por que não redimensionar essa metáfora com uma leitura contextualista que leva em conta o atual governo Javier Milei? Além disso, o cineasta não renega as convenções e os apelos sensoriais do gênero em favor de algo supostamente mais cerebral. Muitas cenas são criadas a partir do choque suscitado pela chegada repentina e sem cerimônias de uma violência captada frontalmente pela câmera.

Eis que a cena de uma criança e de um cão em uma casa novamente se apresenta como importante nas reflexões sobre o filme. É um momento paradigmático por diferentes motivos. Em primeiro lugar, por ser um exemplo evidente da abordagem direta de Demián Rugna, capaz de ser lembrado e citado após o término da projeção. Em segundo lugar, porque invoca os conselhos criativos de Alfred Hitchcock para o suspense, sendo assim o espectador já tem a informação do que irá acontecer antes dos personagens e sente a tensão decorrente dessa condição. E, por último, ainda há mais um tipo de desencantamento que dialoga com os anteriores já evocados pela narrativa. A sequência envolvendo a criança e o cão se prolonga por um tempo além das expectativas comuns. Quanto mais segundos se passam e a ilusão de que o momento seria interminável se amplia, o espectador pode desejar que a violência chegue logo para dar fim à tensão contínua. Confrontando o próprio desejo, o público pode se fazer algumas perguntas. Por que uma reação assim? Será que a audiência também pode sofrer com algo parecido que a família, a política, a religião e a infância também sofreram?

No terceiro ato, uma síntese de tudo que havia sido feito anteriormente para o terror retorna. O gore, o sobrenatural, a possessão demoníaca como contágio viral e a mitologia fantástica se integram em um universo de violência chocante e niilista. A sensação procurada pelo diretor de que nada pode dar certo nem está a salvo não se rende a uma apelação vazia e sensacionalista. A atuação de Ezequiel Rodríguez é um dos marcos para o sentido dramatúrgico que “O mal que nos habita” constrói. Pedro atravessa um arco em que fica atordoado pelos acontecimentos, tenta assumir as rédeas da situação, sofre com as perdas trágicas, cede aos seus impulsos e sente a impotência diante de um mal acima de suas possibilidades de ação. A última abordagem do terror é o da sugestão, na qual o espectador imagina o horror das ações de dois jovens. O último subtexto atinge diretamente o protagonista. Existe algo equivalente ao medo de seus entes queridos morrerem? Talvez viver sem o privilégio de desconhecer os eventos terríveis em sua família.