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“O MISTÉRIO DE CANDYMAN” (1992) – Heranças

Nem todos os legados históricos são bons. Se a humanidade progrediu em inúmeros aspectos, em incontáveis outros parece não ter evoluído significativamente. O racismo é exemplo de herança dos tempos em que o valor de uma pessoa dependia da cor da sua pele. Em O MISTÉRIO DE CANDYMAN, a conexão desse período com o atual é metáfora para uma herança profundamente arraigada no seio social.

Helen Lyle conhece Candyman como uma lenda urbana segundo a qual um homem negro com um gancho em uma das mãos aparece para matar a pessoa que repete seu nome cinco vezes em frente a um espelho. Sabendo que ao mitológico assassino é atribuído um homicídio em um bairro de periferia, ela decide investigar o caso, ignorando os riscos pessoais que passa a correr.

(© Columbia TriStar Home Entertainment / Divulgação)

O que é importante no universo diegético não é se Candyman é real – isto é, se ele está na mente de Helen ou se o sobrenatural se confirma -, mas o que ele significa. A lenda foi forjada em um período histórico em que a barbárie contra negros era naturalizada, subsistindo resquícios daquela mentalidade que corroem as relações sociais. É por isso que Anne-Marie (Vanessa Williams) não se mostra aberta logo de início à abordagem de Helen, imaginando que esta, como mulher branca, acha que todos os negros estão envolvidos com a criminalidade.

Virginia Madsen tem em Helen uma pesquisadora destemida ao extremo, porém sua coragem, além de pouco sábia, é também uma herança. Quando a protagonista chega com sua amiga Bernadette (Kasi Lemmons) ao bairro onde ocorreu o homicídio atribuído a Candyman, elas são recepcionadas por homens (negros) que, ao mesmo tempo em que as deixam com receio (de sofrer algum crime), também têm receio delas (de que possam ser policiais). Trata-se de um ciclo vicioso em que o local, o conjunto habitacional Cabrini-Green, é estigmatizado por quem está de fora, como se a criminalidade fosse o único idioma. Com a chegada de estranhas, a incerteza se torna perigosa para todos.

Porém, Helen não se importa com os perigos do local, ao menos não como deveria. Seu casamento não está muito feliz, legando a ela uma dedicação obsessiva à investigação de Candyman. A estética sublime dos cenários não lhe é óbice: algumas edificações estão em ruínas, há dejetos no chão, sujeira por todo lado e grafites e pichações nas paredes; nada disso impede Helen de atravessar o buraco do espelho para tirar fotos para a sua pesquisa. O diretor e roteirista Bernard Rose aproveita bem os flashes da câmera da protagonista para, associando-os à montagem, reforçar o terror da atmosfera que cria no longa.

O mistério de Candyman” é um slasher focado na mitologia e na ambientação, embora tenha jump scares pontuais também. A parte da mitologia se relaciona ao passado de Daniel, que fez dele um assassino cruel e sanguinário empoderado por um backstory de sofrimento e humilhação. Tony Todd cabe como uma luva para o papel, seja por seu porte avantajado (o que torna Candyman mais amedrontador), seja pela voz grave e abafada por efeitos sonoros. A ambientação do filme é igualmente essencial, pois tanto os detalhes (as giletes nos doces, o crucifixo em cima da cama de Helen) quanto o que há de explícito (o grafite com a boca aberta, da qual Helen sai ao atravessar uma parede) criam o clima do terror. Outro grande destaque do longa é a trilha de Philip Glass, com composições que aliam o som de órgão com o de coro cujo resultado é de arrepiar.

Sendo um filme de terror, os elementos básicos do gênero se fazem presentes, contudo em medida que permite a inserção do público naquela realidade (e em seus meandros surreais). Candyman demora a aparecer e revela seu lado abominável aos poucos, elevando o sofrimento de Helen. Há litros de sangue que parecem jorrar da tela, mas o sangue derramado por Candyman precisa ser previamente justificado, o que explica seu suspense. Apesar de seu nome e de receber doces quase como oferenda, o espírito maligno teve uma vida amarga e deseja amargar a de outras pessoas. Se a sua vingança é fruto da herança deixada para ele, a herança que Candyman deixa é um rastro de morte idêntico, por analogia, àquele do qual foi vítima, igualmente bárbaro e sociologicamente condicionado.