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“O MISTÉRIO DE SILVER LAKE” – Paródia da sociedade do espetáculo

Entre as críticas mais famosas do capitalismo está a ideia de uma sociedade do espetáculo, formulada por Guy Debord, em 1967. Através dela, pode-se considerar que a cultura espetacularizada seria a sustentação que daria sentido a uma vida fragmentária e vazia, perdida na sociedade capitalista. Essa é uma das perspectivas adotadas por David Robert Mitchell em O MISTÉRIO EM SILVER LAKE, uma narrativa que desafia tanto as certezas do protagonista quanto as sensações dos espectadores ao longo de uma progressão nada espetacularizada.

(© Diamond Films / Divulgação)

O personagem principal se chama Sam e está perdido na vida, apenas espiando suas vizinhas que estejam nuas ou com pouca roupa. Em um desses dias, encontra uma nova vizinha com quem passa algumas horas. No dia seguinte, ela desaparece deixando o apartamento onde estava praticamente vazio. Apesar de ter poucos indícios, Sam começa a investigar o caso e recolhe qualquer mínimo sinal que possa ser uma pista (rabiscos nas paredes, mensagens subliminares em canções…). Assim, a jornada que ele percorre também deixa o público perdido.

Porém, a desorientação de quem assiste à produção não é gerada por falhas ou manipulações excessivas. David Robert Mitchell escreve e dirige uma história pautada em um falso mistério, já que o protagonista acredita haver um grande enigma a ser solucionado onde só existe a banalidade do cotidiano: uma jovem com quem teve pouco contato (mas já o suficiente para fazê-lo se apaixonar) se muda sem avisá-lo significaria um crime. O diretor roteirista sabe que uma premissa assim somente poderia ser abordada pela paródia e pelo sarcasmo, o que fica explícito pela forma como sua investigação se desenrola através de uma sucessão de aleatoriedades que o coloca em outros “mistérios” – o desaparecimento da vizinha se mistura ao sumiço de um grande empresário, às mortes de cães por um serial killer e aos subtextos enigmáticos de uma banda chamada Jesus e as noivas de Drácula.

Por conta disso, a trama não imprime uma relação causal na sequência dos eventos e parece criar pequenos universos povoados por figuras igualmente aleatórias. Em seu círculo íntimo, Sam convive com amigos fúteis interessados apenas na próxima festa ou pseudointelectuais que analisam a geração contemporânea; durante a investigação, ele se depara com um homem vestido de pirata, um escritor paranoico com teorias de conspiração, músicos gótico-religiosos, um senhor sem teto e uma seita mística. Em cada pequeno mundo visitado pelo personagem, fica também a sensação de que ele se move por influência de artefatos da cultura pop, como revistas antigas de videogame, álbuns de rock, revistas da Playboy e filmes antigos.

Através desses símbolos culturais, a ideia da sociedade do espetáculo toma forma e é ridicularizada. Não por coincidência, David Robert Mitchell situa a ação em Los Angeles para utilizar o imaginário de Hollywood na grande paranoia de Sam: pode ser uma localização geográfica de um universo de aparências através de planos gerais que mostram o outdoor de Hollywood; uma insinuação dos vários papéis desempenhados por atores e atrizes, inclusive quando as suspeitas recaem em algumas atrizes; e uma fusão entre realidade e ficção a cada vez que o enquadramento captura trechos de filmes exibidos na TV. É interessante também que a investigação absurda leva o protagonista a buscar mensagens subliminares esdrúxulas nas canções e a acreditar que os grandes clássicos da música foram manipulados para dominar mentes – nada melhor do que a sequência na casa do compositor para traduzir o nonsense de suas desconfianças.  

Se a ambientação for afunilada para a área específica de Silver Lake, a construção do mundo diegético também obedece a uma lógica própria que remete ao cinema de David Lynch. A maneira como Sam enxerga tudo ao seu redor ganha uma roupagem surrealista, principalmente através da abordagem sobrenatural de uma revista em quadrinhos, que tenta explicar as origens do serial killer de cães e sugerir a existência de uma mulher assassina com máscara de coruja. Além disso, o cineasta dá uma plasticidade às imagens que tem uma dimensão onírica (as alucinações de mulheres latindo), permite eventos inesperados (a resolução da cena em que meninos vandalizam o carro de Sam) e combina sensações divergentes (uma trilha sonora de suspense quando o rapaz vê um aviso de despejo na porta do apartamento). Nesse sentido, não deixa de ser curioso criar uma aura de mistério hitchcockiano (mencionado na placa de um cinema drive-in) em diálogo com uma atmosfera lynchiana.

Com o desenrolar aleatório da trama, o protagonista é simultaneamente desenvolvido. São sutilezas que definem o personagem como um sujeito patético de motivação sexista: não trabalha, invade a intimidade de mulheres com o binóculo, considera a vizinha um alvo de suas pulsões sexuais, pode perder a moradia a qualquer instante, faz sua vida girar em torno simplesmente de nudez, sexo e masturbação e cede às paranoias insanas de teorias da conspiração. Por sinal, suas ações dizem muitos sobre sua personalidade, quando usa uma suposta meritocracia para criticar pessoas em situação de rua; teoriza sobre os olhares de uma cantora e suas relações com um mundo secreto comandado por ricos e poderosos; e demonstra ser um sujeito vazio no modo como define suas relações amorosas.

No momento em que se compreende que tipo de protagonista “O mistério em Silver Lake” tem, as críticas à espetacularização da cultura absorvem questionamentos a um individualismo extremo. A narrativa escancara a tese de que os indivíduos sempre deveriam ser exaltados, e suas vontades, satisfeitas, e, quando isso ocorre, a culpa recai em algo externo, seja alguma grande conspiração, seja algum inimigo oculto – afinal, o mistério da vizinha é um falso mistério e os eventuais assassinos não têm forma física definida ou um rosto revelado. Em face do retrato pensado por David Robert Mitchell para uma geração de indivíduos vazios, a abordagem estética da paródia cai como uma luva para o sarcasmo que mistura David Lynch e Alfred Hitchcock, assim como integra suspense, comédia, terror e noir.