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“O MUNDO DE ONTEM” – Retrato frio de um presente perigoso [24 F.Rio]

Possivelmente, um dos maiores acertos de O MUNDO DE ONTEM é seu título. Por mais que o filme se passe no presente, sua história evoca um passado não tão distante. A premissa é o avanço da extrema direita pelo mundo, tal qual o avanço do nazifascismo na década de 1930 sob a forma de governos, movimentos ou de figuras específicas. Retirando-se a relação entre as temporalidades, a obra não acompanha a força da decisão de retratar um fenômeno tão atual.

(© Pyramide International / Divulgação)

O palco para a discussão acerca de possíveis saídas para o recrudescimento de forças políticas autoritárias é a França. Nos últimos dias de seu mandato, os planos da presidente da República Elisabeth de Raincy são a aposentadoria da vida política. No entanto, há três dias do primeiro turno das novas eleições presidenciais, ela é informada pelo secretário-geral Franck L’Herbier que um escândalo de corrupção atrapalhará a vitória de seu sucessor e aumentará as chances do candidato de extrema direita François Willem. Este problema se apresenta há pouco tempo das eleições e exige uma resolução que afetará o país e o resto do mundo.

A estrutura narrativa assume as características de um thriller político nos bastidores do poder. Grande parte das sequências se passa no interior da residência oficial da presidência com reuniões da presidente acontecendo em seu escritório. O diretor Diastème faz a câmera seguir a protagonista em encontros com o secretário-geral, o primeiro-ministro e outros funcionários para situar e explicar o conflito central. Nesse sentido, o primeiro objetivo é, de certa forma, satisfeito, já que o espectador compreende sem dificuldades as repercussões da vitória da extrema direita (riscos da adoção da pena de morte, aumento da violência contra imigrantes, negros, homossexuais…) e a predileção de parte do eleitorado por um candidato autoritário quando o adversário é acusado de corrupção. A grande questão problemática é tratar esses temas de modo excessivamente verborrágico, deixando de retratá-los a partir de construções visuais para trazer à tona diálogos muito mais capazes de esmiuçar tudo para o público do que de desenvolver os embates entre os personagens.

Diastème tenta também desdobrar o thriller político para outros níveis. Inicialmente, o mistério se aplicava aos planos e às conjecturas da equipe da presidente para mitigar os efeitos de uma revelação bombástica. Com o passar do tempo, Elisabeth e Patrick, chefe do time de segurança, planejam uma estratégia clandestina para descobrir algum segredo de Willem. Uma câmera ilegal é plantada, o funcionário passa a acompanhar a intimidade do candidato e a descoberta de um caso extraconjugal se torna um dos objetivos da campanha. O que poderia ser uma subtrama com capacidade de imprimir maior tensão acaba gerando pouco impacto de fato, pois a abordagem é fria, distanciada e nada expressiva. As sequências que mostram a gravação de momentos íntimos em torno de Willem surgem desprovidas de peso dramático e deslocadas do resto da narrativa como se fossem um desvio do que seria realmente importante.

Existe ainda outra subtrama que se revela um ponto de colisão que compromete a dimensão política da trama: o lado pessoal da protagonista. A decisão de sair da vida política em função de uma grave doença que mantém sob sigilo poderia deixar o conflito principal mais tenso e menos propenso a soluções fáceis. O dilema giraria em torno da preocupação individual com a própria saúde e da apreensão mais ampla com a institucionalização de um corrente política autoritária . Entretanto, qualquer referência à doença parece ser o cumprimento de uma obrigação imposta pelo roteiro sem conseguir colocar uma pressão maior sobre a personagem. As aparições de uma filha temerosa com o estado de saúde da mãe e as cenas de tratamento médico não são construídas estilisticamente para demonstrar a inquietação com o destino da protagonista e sua debilidade física.

Mesmo quando a trama se desenvolve a partir de novos acontecimentos, a sensação de anticlímax permanece. As conversas de Elisabeth com outros políticos fazem com que diferentes estratégias sejam cogitadas, as intrigas entre as autoridades desencadeiam suspeitas de traição e uma reviravolta trágica na sociedade reposiciona publicamente as estratégias de cada campanha. Se esses eventos forem observados isoladamente, seria possível pensar que conseguiriam dar uma energia dramática à narrativa. A suposição se esgota rapidamente, pois a encenação evita o drama que era pretendido inicialmente pelo teor da história. Além de manter a verborragia, o filme trabalha cada novo momento de maneira indireta e distante do centro da ação. Se uma tragédia aconteceu ou uma conversa suspeita ocorreu, a narrativa retrata ambas as situações não pelo ponto de vista dos participantes, mas de personagens que não as vivenciaram, e sempre dentro da residência oficial. Assim, a velha máxima de que no cinema mostrar é mais importante do que falar é desconsiderada e o excesso de filmagens internas paralisia a trama.

Por um lado, doses descontroladas de verborragia, dramas sem impacto real e abordagens indiretas dos fatos podem esvaziar a força da premissa. Já sob outra perspectiva, as tentativas de criar efeitos sensoriais mais evidentes se revelam destoantes do tom geral da produção. Um exemplo é o uso constante e invasivo de uma trilha sonora que se pretende tensa ou misteriosa, ainda que os momentos em que ela se faz presente não sejam necessariamente tão tensos ou misteriosos; além disso, a trilha sonora não consegue traduzir o estado de espírito dos personagens, apesar de algumas cenas serem construída para esse fim, pois as composições de Léa Drucker e de Denis Podalydès são tão minimalistas e contidas que qualquer outro elemento de linguagem cinematográfica parecem conflitar com o estilo de atuação. Ocasionalmente, Diastème consegue criar algumas sequências mais interessantes a partir apenas da mise-en-scène e sem depender tanto de diálogos expositivos (por exemplo, o destino de Franck e a tomada de decisão final de Elisabeth), porém já não há mais tempo de mudar as impressões deixadas. Um tema atraente que chame a atenção por conta do contexto atual não esconde a construção de uma narrativa fria que não mergulha efetivamente em suas possibilidades dramáticas e artísticas.

*Filme assistido durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).