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“O OFICIAL E O ESPIÃO” – O inimigo ontem, hoje e sempre

Preliminarmente, é necessário esclarecer que os atos abjetos pelos quais Roman Polanski, diretor de “O oficial e o espião”, foi condenado e permanece foragido há muitos anos são dignos do maior escárnio. Tratando-se o cinema, contudo, de uma obra coletiva, e considerando que o leitor do Nosso Cinema pode ter interesse na produção, o texto que segue abstrai esse fator. Não obstante, fica a ressalva de que Polanski cometeu crimes graves e se furtou da merecida punição. Seus atos nefastos não podem ser esquecidos – mas sua arte tampouco merece desprezo.

Uma vertente política civilizada enxerga os adversários como um contraponto saudável que reproduz o modelo democrático. Recentemente, todavia, políticos do mundo todo, abraçando a polarização exacerbada, adotam um ponto de vista segundo o qual não há meros adversários no campo político, mas inimigos que devem ser combatidos com força máxima – de preferência, eliminando-os, literal e metaforicamente. Baseado em eventos e personagens reais, O OFICIAL E O ESPIÃO demonstra que a busca quase voluptuosa por um inimigo político (seja quem for, pelos motivos que forem) não é inovação dos tempos atuais.

No final do século XIX, o capitão Alfred Dreyfus, um dos poucos judeus integrantes do exército francês, é condenado ao exílio por traição. O motivo: traição. Ele, porém, nega os fatos imputados. Mesmo sendo antipático aos judeus, o coronel Georges Picquart se defronta com indícios de que não seria Dreyfus o traidor. Quanto mais ele investiga o caso, mais crescem as suas dúvidas se deveria esquecer o caso em obediência cega ou fazer o que acha correto e oportunizar a Dreyfus um novo julgamento.

(© California Filmes / Divulgação)

O diretor Roman Polanski escreveu o roteiro juntamente com Robert Harris (autor da obra original na qual o script se baseou) atentando para o Zeitgeist ao criar categorias de inimigos. O inimigo próximo é o traidor, aquele que forneceu documentos secretos a nações estrangeiras, sendo a Alemanha o inimigo remoto, o que condiz com um período antecedente à Primeira Guerra, que colocou Alemanha e França em polos opostos.

E se Dreyfus não for o traidor? Pouco importa, visto que, enquanto judeu, ele pertence à categoria do inimigo simbólico, aquele que é mal visto sem um motivo efetivo. É um período em que já havia franceses xenofóbicos inconformados com a “degeneração de seus valores morais e artísticos” em razão dos estrangeiros (estes, automaticamente criminosos) que lá passaram a viver. O inimigo está dentro e fora da França, dentro e fora do Exército.

Tudo isso é muito coerente com a época, cujo design de produção é elaborado de maneira formidável através de cenários pomposos e um céu sugestivamente cinzento (o clima de espionagem e opressão não permite céus ensolarados, salvo episodicamente). Se a trilha musical de Alexandre Desplat não é inesquecível, ela funciona bem o suficiente para acompanhar o ritmo da narrativa em momentos de suspense e de drama.

Para imprimir maior naturalismo estético, quase todos os homens usam bigodes (ou similares), cada um ao seu estilo, inclusive os dois principais, Picquart e Dreyfus. Este, interpretado por Louis Garrel, não tem a personalidade muito desenvolvida, destacando-se somente a composição visual do ator, que em nada lembra o galã de outras obras. Envelhecido por uma maquiagem pálida e uma careca artificial, Garrel está quase irreconhecível. Picquart é vivido por Jean Dujardin, um híbrido de conquistador com justiceiro. Enquanto conquistador, ele tem um relacionamento com uma mulher casada (a Pauline de Emmanuelle Seigner, pouco inspirada), em um arco dramático desinteressante até mesmo no irônico desfecho, servindo apenas para mostrar que Picquart não é o herói perfeito.

No perfil justiceiro de Picquart, o roteiro encontra possibilidades narrativas que agitam a trama em vários aspectos. Sua investigação é mola propulsora do plot, que se divide entre suas lembranças (pretérito diegético) e seus atos buscando justiça (presente diegético). Não são duas narrativas distintas, mas a exploração da sua subjetividade mental através de uma técnica bem didática: Polanski elege um elemento do campo para dar zoom e, através de fusão, iniciar uma sequência de flashback. Além disso, quando as imagens do pretérito diegético são imaginadas (como na cena em que Picquart lê a carta de Dreyfus na ilha), a fotografia adota um tom sépia para, didaticamente, diferenciar dos flashbacks do que o coronel efetivamente presenciou.

Há no longa simbolismos óbvios, porém sutis, como as cenas em que Picquart tenta abrir a janela de seu gabinete (como se estivesse buscando a verdade), a obediência do cachorro do general responsável pela inteligência, o zoom na “bituca” de cigarro encerrando (em tese) o caso e o duelo de espadas (Henry coloca a mão nas costas, como se escondesse algo, diversamente do seu oponente, que o encara de peito aberto).

O desfecho de “O oficial e o espião” é de uma ironia amarga, mas permite diversos paralelos com a política contemporânea. De teorias conspiratórias a ilegalidades cometidas sob pretexto de justiça, o filme é compatível com o enfrentamento dos inimigos que se vê hoje no Brasil e no mundo. Como serão vistos, no futuro, os inimigos do agora? A História dá a resposta.