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“O PESO DO TALENTO” – Nick Cage, o heterodoxo

Nicolas Cage é provavelmente o artista mais folclórico da sua geração. Por exemplo, para o seu papel em “Asas da liberdade” (1984), um veterano da Guerra do Vietnã, ele resolveu tirar dois dentes sem anestesia para sentir uma dor análoga à de sua personagem. Depois de compras pouco usuais (ilha, castelo, fósseis etc.) e outras igualmente caras, mas mais comuns (carros de luxo), teve de vender vários bens para pagar uma dívida milionária junto ao Tesouro dos EUA. Com apenas dez dias de relacionamento, casou-se com a filha de seu ídolo Elvis. Dentre seus animais de estimação estão um polvo, um tubarão e um crocodilo. Um pouco da sua heterodoxia está em O PESO DO TALENTO, mas certamente apenas uma fração do quão heterodoxo é o lendário ator.

Com problemas financeiros e em baixa na carreira, Nicolas Cage aceita um último trabalho antes de se aposentar. O contratante é Javi, um fã do ator, mas que oculta um lado perigoso de sua vida. Antes de encontrá-lo, Cage é recrutado pela CIA para coletar informações a seu respeito, o que lhe exige interpretar mais de um papel em sua própria vida.

(© Paris Filmes / Divulgação)

Sim: em “O peso do talento”, Nicolas Cage interpreta a si mesmo. Não se trata, é claro, de nada biográfico, não é essa a proposta. A ideia do diretor Tom Gormican é se apropriar da persona famosa de Cage para exagerá-la, revisitando alguns de seus filmes, e assim criar uma comédia metalinguística. Entretanto, mesmo mencionando as dívidas, o divórcio e outros elementos (mais) controversos da biografia de Cage, o texto escrito por Gormican e Kevin Etten prefere expor o lado inofensivo e pouco polêmico do ator. Seu perfil é inicialmente apresentado como um mero workaholic incompreendido, aproximando-o de uma personalidade ordinária porque muitos que estão à sua volta são mais esquisitos que ele. Nesse sentido, os agentes da CIA são dois patetas e Javi é um fanático.

O grande problema do filme está nos momentos em que se leva a sério, sobretudo nas cenas dramáticas. Estão lá, dentre outros, o clichê do pai que não consegue se conectar com a filha adolescente e o romance não desenvolvido que serve para evitar a monotonia de uma personagem (Javi, no caso). Porém, diversamente dos roteiristas, Cage demonstra plena compreensão de que o filme que protagoniza é uma sátira, gênero explorado nas melhores cenas do longa (como a que Nick e Javi precisam ultrapassar um muro, satirizando o sacrifício dos filmes de ação, ou quando Cage assume um evidente overacting, satirizando seus papéis sérios). O ator está disposto a rir de si mesmo (como quando avalia “Capitão Corelli” em conversa com Javi ou quando alude ao seu próprio método de atuação), o que torna aspectos que geralmente seriam equivocados (o didatismo verbal da “arma de verdade” segurada pelo boneco, reforçado por um plano-detalhe, a ausência de verossimilhança concernente à atuação da CIA, a publicidade ostensiva de uma marca de cereal etc.) atributos coerentes com a sátira.

Pedro Pascal também compreende que está em uma comédia que não pode ser levada a sério. Ainda que Javi tenha de ser uma personagem mais séria (até porque, diversamente de Nick, não está em um momento de crise), é necessário ser fiel à paixão de um fã. Por exemplo, ao dizer para o ator que ele não pode parar de atuar, é preciso ser convincente em seu desejo, ainda que seus argumentos verbalizados sejam exagerados, pois é do exagero que nasce o humor proposto – ironicamente, é em razão de seus excessos que Cage se tornou célebre. “O peso do talento” tem ainda razoáveis cenas de ação, que são necessárias como engrenagens narrativas, mas alguns planos aparentemente inocentes têm valor muito superior (é o que acontece quando Javi vai se encontrar com Nick à beira da piscina, aparecendo com uma sunga que, além de destoar da usada pelo seu contratado, o deixa desconfortável).

Até mesmo a parte séria da produção é resultado de uma abordagem humorística. Inicialmente verborrágico, Nick encontra em si mesmo – ou melhor, em Nicky – um parceiro para diálogos nonsense. Trata-se, entretanto, de um confronto entre duas versões de si: o primeiro é o atual, com rugas, levemente calvo, barbado e camisas coloridas; o segundo é sua versão mais jovem (rejuvenescido por um bom trabalho de maquiagem), com cabelo alisado e em tom mais claro, sem barba e sempre de jaqueta de couro. As diversas referências, visuais e textuais, a filmes antigos de Cage não teriam o mesmo sentido se ele não se reencontrasse – ainda que de um modo pouco usual. Todos conversam consigo mesmos para encontrar motivação, com ele não é diferente. O que é incomparável é o conteúdo da conversa, um conteúdo tão heterodoxo quanto o próprio Nicolas Cage.