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“O PODEROSO CHEFÃO” – A transcendental epopeia mafiosa

O ano é 1945. Nova Iorque, Estados Unidos. O lugar no tempo e na história da narrativa de uma das maiores obras da história da sétima arte. O PODEROSO CHEFÃO transcendeu o adjetivo “memorável” para lograr o alto lugar entre as poucas obras que conseguem aliar a perfeição dos aspectos técnicos com a inesquecível história de amadurecimento, responsabilidade e, principalmente, família.

Don Vito Corleone (Marlon Brando) é o chefe de uma família mafiosa que está passando por mudanças, devido à pressão de outras famílias da cidade. Quando é necessário, seu filho mais distante dos negócios familiares irá aparecer para proteger os Corleone. A partir daí, Michael Corleone (Al Pacino) é transformado pelo seu envolvimento com os negócios de seu pai, e sua vida muda por completo.

A epopeia de quase três horas de duração, dirigida pelo mestre Fancis Ford Coppola, é um aglutinado lustroso e complexo. Seu andamento é fundamentado no poderoso roteiro, adaptado do livro homônimo escrito por Mario Puzo, que colaborou com Coppola na elaboração do screenplay. As falas dos personagens principais tecem, aos poucos, uma obra de tapeçaria impecável, costurando e ajuntando pequenas linhas individuais, montando-as em um plano muito maior. Relações interpessoais introduzem conceitos e são o guia para o espectador adentrar no universo mafioso retratado na película. A cena em que Michael assassina Solozzo (Al Lettieri) e McCluskey (Sterling Hayden) é tão bem construída em termos de roteiro e direção, que consegue capturar uma atmosfera de suspense à la Hitchcock (propositalmente pretendida por Coppola) para chocar o espectador com seu brutal e cruel desfecho. Cirúrgico nas passagens de tempo e meticulosamente preciso em seu progresso, sua principal qualidade reside no impacto e na grandiosidade do desenvolvimento de Vito e Michael Corleone.

Marlon Brando entrega uma atuação arrebatadora ao convencer o espectador através de nuances tão perspicazes quanto seus trejeitos de um idoso chefe da máfia. Impressionante é saber que Brando tinha meros 47 anos na época das gravações, enquanto seu personagem era 16 anos mais velho. Isso foi possível graças ao incrível trabalho de maquiagem e à dedicação do ator ao papel, que fizeram dessa uma das atuações mais marcantes da história do cinema. Cada fala, movimento e improviso (como o gato da cena de abertura, que não estava no roteiro) estabeleceram um personagem que é misterioso, extremamente inteligente e que cuida de sua família e de seus afilhados como se fossem si próprio. Don Corleone não figura apenas entre os mais populares personagens da sétima arte, como também reflete anseios e conflitos que permeiam uma sociedade baseada na imigração e calçada na ilegalidade como forma de viver o “sonho americano”. O que tornou Vito Corleone no Don não é explorado nesse longa (para ser posteriormente mostrado na sequência). Contudo, é justamente o retrato incessante de sua imponente presença que dá ainda mais crédito ao impecável trabalho do roteiro e da direção ao utilizar-se de seu arsenal de ferramentas cinematográficas para criar a persona de Don Corleone.

A escolha de Al Pacino para o papel de Michael Corleone, hoje, parece mais do que adequada. Porém, na época, o novato não foi a primeira escolha de Coppola para o papel. Mas o que mais poderia acontecer para que esse papel pertencesse a Pacino e este fizesse um trabalho tão brilhante? Todo o arco de seu personagem passa pela reviravolta na vida de Michael, que se torna o sustentáculo de toda a família Corleone. É de suma importância narrativa a contemplatividade nos olhos de Michael, sua paciência, sua estratégia refletida em seus gestos corporais. Pouco de Vito, muito de Michael. Desde a festa de casamento de sua irmã, Connie (Talia Shire), passando pelo casamento com Apollonia (Simonetta Steffanelli) e o conflito com seu cunhado Carlo (Gianni Russo), cada movimento e cada passo dado por Michael são pequenos passos no seu amadurecimento como homem e como futuro Don.

Toda a construção desse universo passa pelas mãos de Gordon Willis, o diretor de fotografia. A captura de uma Nova Iorque pós-guerra mostra planos fixos ao nível dos olhos nas calçadas e nas ruas. Toda a trama, aliás, é compreendida dessa forma. Priorizando os prédios e planos abertos nas externas, há o sentimento, por parte do espectador, de pertencimento à cidade, inclusive nas sequências na Sicília. Nessas, há uma exploração cuidadosa das colinas e do clima através de planos gerais e a preferência por cores arenosas. Em ambientes fechados, esse trabalho é ainda mais cuidadoso, através de uma mise en scène rica e abundante em detalhes. Os abajures são exemplo desse cuidado, pois criam pouca iluminação e são manipulados de forma a moldar personalidades distintas, como na cena de abertura, por exemplo. O sempre iluminado por completo Tom Hagen (Robert Duvall) é o consiglieri da família. Advogado respeitado e muito inteligente, Tom é caracterizado como a racionalidade “não-siciliana” que os Corleone precisam, quase que como um contrapeso numa balança. Por outro lado, a luz é sempre manipulada com cuidado em Don Corleone, como o uso de contrastes em seu rosto.

Os enquadramentos nas sequências violentas e o modo de serem filmadas, priorizando uma câmera estática, mostram com clareza que, ao contrário dos cineastas atuais, não é necessário tremer exageradamente uma câmera para retratar uma cena de briga ou violência. Em “O poderoso chefão”, as partes mais violentas são tão brutais que chocam justamente por, de forma incômoda, fixar o objeto que é alvo da agressão. Exemplos disso são o rosto ensanguentado de McCluskey, o carro de Apollonia, a expressão abatida de Connie e o corpo baleado de Don Corleone na rua. Todas essas imagens permanecem na tela tempo suficiente para o espectador tomar consciência do que aconteceu, ao passo que causa repulsa por ser tão explícito. Esse choque no público sempre foi o que Coppola pretendeu com as cenas mais violentas da película.

O precioso trabalho da montagem também deve ser destacado, pois consegue ditar o ritmo e a personalidade do filme, tornando-o excitante, mas ao mesmo tempo passando a sensação de controle absoluto sobre cada segundo de cada personagem em tela. Falando em personagens, suas entradas e saídas durante a narrativa demonstram as lições por eles aprendidas durante sua jornada. Sonny (James Caan), por exemplo, tem um comportamento explosivo e inconsequente, que acaba causando a sua queda. Além disso, a maneira como é tratada a questão do machismo da época, refletido em Carlo, cria uma discussão a respeito do papel da mulher no casamento e na sociedade na qual o filme se passa. Há elementos de racismo e machismo no roteiro, de fato. Contudo, é necessário levar em consideração a época em que o filme se passa, e como isso é importante para a película. Todos os subtemas morais que são apresentados apenas enriquecem a história como um todo, tornando-a mais intrigante e, de certa forma, provocativa.

A brilhante ambientação do filme, que engloba a fotografia, a trilha sonora marcante e um design de produção que meticulosamente constrói uma atmosfera inconfundível, estabelece a película como uma obra tecnicamente esplendorosa. A história de ascensão de um homem que a princípio não gostaria de se envolver com a família, e que acaba se tornando o mais forte e mais bem preparado para a posição, é absolutamente cativante. No bojo dessa obra residem as lições sobre como se adequar frente às situações diversas da vida, através de maturidade, responsabilidade e, principalmente, inteligência. “O poderoso chefão” é, sobretudo, um filme sobre família. Ao assistir, deixe-se cativar pelos infindáveis aspectos bem executados, pelas atuações brilhantes e pela história que marcou para sempre a sétima arte. Afinal, essa parece uma proposta que você não irá recusar.