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“O TANGO DO VIÚVO E O ESPELHO DEFORMADOR” – Sonhos e/ou pesadelos [9º ODC]

Assistir a O TANGO DO VIÚVO E O ESPELHO DEFORMADOR é uma curiosa sucessão de sensações. Há um entrelaçamento autoral entre sonho e pesadelo, vida e morte, que parte de um contexto de produção incomum: os rolos mudos e incompletos do primeiro longa metragem do diretor chileno Raúl Ruiz foram encontrados em um cinema de Santiago após terem sido dados como perdidos por décadas. Coube à sua viúva e editora, Valeria Sarmiento, continuar o trabalho.

O filme avança por tempos diferentes, transitando pelo que foi feito originalmente em 1967 e finalizado em 2019. Nesse vaivém da produção, é desenvolvida a história de um viúvo vivendo sua rotina triste e solitária após a morte da mulher. Nos momentos subsequentes à perda, ele é constantemente seguido pelo fantasma da esposa por todos os lugares da casa. Cansado de tentar fugir, cria uma espécie de prazer pela situação.

Desde o princípio, os realizadores demonstram que não se pode esperar que o roteiro seja linear. A narrativa se desenvolve como um fluxo livre de memórias, sonhos e acontecimentos reais que preenchem o cotidiano do protagonista: trabalha em sua moradia, interage com o sobrinho e com os amigos e lida com assombrações da falecida esposa. As imagens, captadas em 1967, se fundem na plasticidade dos encontros entre realidade e devaneio porque o homem passeia pelas dinâmicas com os outros personagens e pelas aparições da ex-mulher; já a narração em voice over e os diálogos, inseridos em 2019, conferem um peso irreal por conta de um descompasso entre a rotina trivial e a atmosfera onírica de alguém perseguido por algo incompreensível vindo de outra dimensão.

Paralelamente ao enredo que mescla diferentes possibilidades dramáticas, a decupagem adquire características surrealistas ao não se restringir às convenções narrativas clássicas. Valeria Sarmiento explora cada momento do protagonista para dar vazão ao seu inconsciente, que revela dores, satisfações e contradições coerentes com o luto; trabalha leituras psicanalíticas para ressaltar o valor expressivo da peruca da mulher, que teima aparecer; e define uma abordagem onírica, que se assemelha a um pesadelo vivo desvinculado de nossa realidade. Tais percepções são articuladas pela trilha sonora misteriosa, pela fotografia em preto e branco com alto contraste, pela quebra constante das regras do eixo da câmera (movimentos que se desprendem da costumeira angulação em até 180°) e por planos fechados capazes de desorientar o olhar do público e a localização espacial das cenas.

Quando a ambientação surrealista se instala de vez – possivelmente um grande exemplo seja nos momentos em que os planos fechados no rosto dos personagens se abrem para revelar uma mudanças repentina do cenário -, a obra consegue dar um passo além. Após um dos instantes mais impactantes, a narrativa regride cronologicamente para reexibir sequências já vistas anteriormente com o diferencial de apresentar uma narração em voice over responsável por agregar novos significados. O que poderia soar como um recurso apelativo e vazio em si mesmo, na verdade, interliga marido e mulher dentro de um looping que ultrapassa a escala terrena da vida e faz repensar nossas visões tradicionais sobre viver e morrer (algo muito mais expressivo do que possíveis reviravoltas na trama).

O que já seria artisticamente impactante dentro do filme se torna ainda mais interessante se o contexto de produção for considerado. A dinâmica entre o viúvo e o fantasma da mulher pode ser transposta para a trajetória de um projeto iniciado por Raúl Ruiz e concluído por Valeria Sarmiento, ou seja, um processo de busca pelo marido morto. Nesse sentido, a união de registros audiovisuais de períodos tão distintos também faz o presente buscar o passado sem encará-los entidades totalmente separadas. Nessa outra possibilidade de leitura igualmente se evidencia um looping, agora no percurso da artista para ainda ter algo em comum com o falecido cineasta a partir do trabalho dele (nessa operação, personagens e realizadores se complementam).

Tantas possibilidades expressivas de “O tango do viúvo e o espelho deformador” emergem da própria riqueza do cinema enquanto arte. O estado enlutado do protagonista deforma nossa experiência sensível com o filme, através das diversas decisões formais trabalhadas. Já a relação significativa construída entre o senhor viúvo e sua esposa morta, que remete ao vínculo estabelecido por Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento, se configura como um tango que mistura alegria e tragédia. No fim das contas, fica uma combinação de sabor agridoce produzido pelo encontro de opostos entre sonhos e pesadelos, vidas e mortes – não sendo nem completamente positivo nem negativo.

* Filme assistido durante a cobertura da 9ª edição do Olhar de Cinema de Curitiba (9th Curitiba Int’l Film Festival).