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“O TIGRE BRANCO” – A fábula da fome

Com o lançamento de “Cidade de Deus” em 2002, difundiu-se a leitura de Ivana Bentes para uma espetacularização da miséria no cinema. A pesquisadora e crítica cunhou a expressão “cosmética da fome”, em alusão ao projeto artístico chamado de “estética da fome” por Glauber Rocha, para se referir a filmes como “Central do Brasil”, “Quem quer ser um milionário?” e o já citado projeto de Fernando Meirelles. Seria O TIGRE BRANCO o exemplar mais recente de uma representação comedida da pobreza? Seria a linguagem construída de fácil assimilação para não agredir as percepções dos espectadores?

(© Netflix / Divulgação)

Baseado no best-seller homônimo escrito por Aravind Adiga, a produção narra a trajetória de Balram, um ambicioso motorista indiano que usa sua astúcia para ascender socialmente. Quando começa a trabalhar para ricos patrões, vislumbra a possibilidade de escapar de suas origens miseráveis. Porém, a forma como é oprimido no trabalho o leva a elaborar um plano que altere totalmente sua vida. 

O diretor Ramin Bahrani estrutura a narrativa em moldes não lineares, mostrando o passado (infância e trabalho como motorista) e o presente (a prosperidade como empresário em uma região rica da Índia) de modo alternado. Costurando o vaivém temporal está a narração de Balram, justificada através de um e-mail enviado ao Premier chinês em visita ao país em que conta sua jornada. A estratégia é bem-sucedida quando contextualiza a origem do personagem, propõe a quebra da quarta parede ou provoca reflexões incômodas (a comparação dos indianos pobres com galinhas em um galinheiro e a exposição das desigualdades socioeconômicas mesmo em uma democracia); mas se torna reducionista sempre que explica as ações já anunciadas pelas imagens. Além disso, o cineasta utiliza constantemente o recurso durante os primeiros atos, o que faz a narração ser intrusiva. 

Na apresentação do protagonista, todas as menções à sua família possuem um efeito dramático expressivo como se fossem símbolos que o prendessem a uma vida de adversidades. Inicialmente, a necessidade de ajudar na sobrevivência dos parentes após uma perda o faz largar os estudos; em seguida, a pressão de enviar uma parte do salário para cada um ainda o faz se sentir impedido de triunfar. Nesse sentido, as figuras de sua avó e de seu irmão são as mais representativas de uma sensação de peso que carrega – além das cobranças financeiras, eles o pressionam para trabalhar na loja de chá da família e se casar. Embora as imagens criadas não correspondam à agressividade estética defendida por Glauber Rocha, elas se afastam do que foi entendido por alguns críticos como idealização em “Quem quer ser um milionário?”: a dualidade entre riqueza e miséria nos cenários é mais palpável e a narração ironiza a chance de ficar milionário graças a um prêmio ganho em um programa televisivo. 

Acima de tudo, é o desenvolvimento de Balram que faz a narrativa evitar limitações dramáticas. O ator Adarsh Gourav compõe um sujeito que pode ser simultaneamente ambicioso, ingênuo, servil e individualista enquanto percorre uma jornada nos limites de sua sociedade. De início, ele internaliza a servidão e se comporta como um serviçal dócil para Ashok, Pinky, The Stork e The Mongoose (trata os patrões como familiares e vibra internamente quando Ashok o toca pela primeira vez); adiante, aprende que costumes locais ou definições políticas são maleáveis segundo interesses específicos (aprendizado expresso em suas falas quando diz somente haver as castas dos que enchem a barriga e dos que não enchem, e quando comenta que a democracia livre não serve para pessoas pobres); e, mais à frente, age de acordo com uma moral individualista questionável para prosperar (os pequenos golpes para ganhar um dinheiro extra). 

Evitar limitações dramáticas não quer dizer que elas não existam, ainda que as representações sociais sejam coerentes em muitos casos. No que se refere aos patrões, a aparência de meritocracia e civilidade dura pouco tempo, já que seus negócios com políticos são corruptos e The Stork e The Mongoose humilham funcionários – as sequências relacionadas a um atropelamento evidenciam a contradição de tratar os empregados como família quando interessa para logo depois voltar às humilhações costumeiras. É interessante também observar como o roteiro se esforça para não depender de maniqueísmos, utilizando Ashok e Pinky para dar novas dimensões aos empresários – a despeito disso, a ocidentalização dos dois personagens, que passaram um tempo nos EUA, sugere uma visão ingênua dos estadunidenses como símbolo da modernidade. 

Por outro lado, a presença de traços de fábula poderia despertar questionamentos sobre a encenação da pobreza. Contudo, o diretor lida com a abordagem alegórica sem enfraquecer os aspectos sociais do universo diegético, como a metáfora do tigre branco para o protagonista (uma exceção entre seus iguais que extrapola o desejo de satisfação ilimitada de desejos). Em contrapartida, a alegoria é construída de maneira muito literal com falas que escancaram sem sutilezas a mensagem da fábula, como as citações acerca do poder libertador da beleza do mundo para o fim da escravidão e do fato de Bunda ser alguém que acordou enquanto os outros ainda dormem. A narrativa, portanto, não concretiza visualmente sua construção artística, exceto pelas composições dos planos quando Balram acredita fazer parte do mesmo mundo dos patrões e quando a realidade prova o contrário. 

A partir da quebra de suas expectativas, Balram empreende um percurso às avessas que remete à metáfora que dá nome à obra. Assim como o animal é uma exceção entre os demais de sua espécie, o homem é uma exceção na forma como corrompe seu entendimento sobre as possibilidades de ascensão social de pessoas pobres. Por conta de sua representação particular de uma Índia desigual, algumas leituras compararam “O tigre branco” a “Parasita” (clique aqui para ler a nossa crítica) devido às críticas ao capitalismo. Porém, se o filme sul-coreano aborda resistências possíveis ao sistema, o drama indiano analisa a interiorização da mentalidade hegemônica nos indivíduos e sem espetacularizar a miséria de economias emergentes.