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“OBEDIÊNCIA” – O irrazoável como pretexto para a ética consequencialista

* Filme assistido na plataforma da Supo Mungam Films (clique aqui para acessar a página da Supo Mungam Plus).

Uma pergunta simples: qual o limite da ação em boa-fé? Dito de outro modo: até que ponto a ingenuidade é escusável? Em OBEDIÊNCIA, discutem-se as fronteiras entre a ingenuidade da obediência e o medo pessoal de um aparato de poder, algo que pode justificar o que é aparentemente injustificável.

Sandra é gerente de uma rede de fast food. Seu dia promete ser difícil: uma sexta-feira, naturalmente agitada, com a visita de um funcionário do controle de qualidade e o bacon acabando (graças a um erro de um dos empregados). Quando a polícia liga, tudo fica mais sério: uma de suas funcionárias, Becky, é acusada por uma cliente por tê-la furtado. Antes de chegar ao local, o policial pede para Sandra controlar a situação, que se torna mais estranha a cada minuto.

(© Supo Mungam Plus / Divulgação)

Interpretada de maneira magnífica por Ann Dowd – sua atuação é provavelmente o que o filme tem de melhor, sendo sintomática a queda de qualidade da obra quando ela momentaneamente sai de cena -, Sandra é uma personagem multifacetada. Nos primeiros minutos em que aparece, é fácil sentir empatia por ela em razão da maneira pela qual é tratada. Em seguida, verifica-se que ela é o oposto da Becky da ótima Dreama Walker: Sandra é madura, Becky é jovem; esta se relaciona com mais de um homem ao mesmo tempo, aquela está radiante pelo vindouro noivado.

Tudo leva a crer que Becky e Sandra não se dão bem, ou, no máximo, têm uma relação cordial entre chefe e subordinada. Não é esse, porém, o caso. Sandra é sensível o suficiente para se envaidecer por um elogio do policial (quando diz que ela já é quase uma policial também), mas não perde a empatia por Becky. O policial as coloca em uma situação de extremo desconforto – tudo por telefone! -, de modo que ambas se sentem subjugadas a uma situação opressiva.

Craig Zobel cria uma atmosfera sufocante ao dar maior espaço para o silêncio dentro da sala do telefone. A trilha musical é usada como preenchimento, com cordas que enaltecem a dramaticidade e a estranheza da situação como um todo. Os cenários são quase todos fechados, filmados em planos fechados e transmitindo uma sensação de aperto. O contexto imagético e sonoro é torturante, o espectador se sente oprimido junto com Becky, que se vê obrigada a aquiescer por ser investigada, e com Sandra, que atua por orientação policial e anuência do gerente regional.

O filme perde muito impacto quando Sandra perde importância e quando os bastidores da ligação – se é que é possível falar dessa forma – aparecem. O mistério não deixa de existir e o texto mantém surpresas para os minutos finais, mas provavelmente a maior potência da obra resida no fato de se basear em eventos reais. São recriadas cenas que apenas não são inacreditáveis porque de fato aconteceram. Por outro lado, o longa tenta se manter neutro, no sentido de evitar juízos de valor sobre os atos das personagens. Essa tarefa cabe ao público.

Após o ocorrido, é fácil censurar os envolvidos. O que o filme propõe é a recriação das cenas, primeiro, para torturar o espectador, debruçado sobre um caso muito estranho, para, depois, dar o impulso que faltava para a reflexão sobre seu tema, que é, como o nome indica, a obediência. O título original, “Compliance”, é mais provocativo, pois a polissemia da palavra permite voos mais distantes: submissão, complacência ou condescendência, por exemplo.

Há de fato uma conformidade acrítica nos atos das pessoas. É possível questionar se todos agiram assim por receio da reprimenda policial, mas novamente o fato de ser uma história real impõe uma reflexão mais profunda, para além da indignação facilitada pela distância da tela. O senso crítico é mais aguçado em algumas pessoas do que em outras, porém deveria existir um limite que permitiria a mudança de comportamento das pessoas. Quais seriam as consequências de desobedecer o policial? Não que a ética consequencialista seja a solução para todos os atos individuais, mas ela certamente tem espaço na conduta humana quando esta se aproxima do irrazoável (a falta de razoabilidade é pretexto para que ela seja adotada). A ação irrefletida pode ter consequências graves mesmo quando se está de boa-fé.