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“OBRIGADO, RAPAZES” – Esperando a liberdade [FCI 2023]

Esperando Godot” é uma peça teatral escrita pelo dramaturgo Samuel Beckett em 1949 e encenada pela primeira vez em 1952. Na obra, Estragon e Vladimir conversam em uma estrada enquanto esperam pela chegada de um homem chamado Godot. Não se sabe quem ele é nem a razão para a espera. O diálogo entre os dois é apenas interrompido pela aparição de Pozzo e Lucky. O tempo passa, a espera prossegue e Godot nunca chega. Interpretações diversas já foram feitas sobre a peça e a expressão “esperando Godot” entrou no vocabulário cotidiano. O trabalho de Samuel Beckett dá vida à comédia dramática OBRIGADO, RAPAZES, servindo como subtexto alegórico para a jornada de um ator e cinco detentos.

(© Vision Distribution / Divulgação)

O ator é Antonio e os cinco detentos são Diego, Aziz, Mignolo, Damiano e Radu. O primeiro não sobe no palco há três anos e trabalha como dublador de filmes pornôs. Os outros estão presos por diferentes crimes em um presídio na Itália. O protagonista é convidado e aceita ensinar teatro na prisão. Ao longo do tempo, os seis homens se entregam cada vez mais à arte. Inicialmente, apresentam uma fábula simples e contam com os aplausos da plateia do local. Em seguida, Antonio acredita no talento dos atores não profissionais e decide ensaiar e encenar “Esperando Godot“.

A criação do dramaturgo explora a dimensão dramática e melancólica de uma espera que jamais se concretiza, de um homem que poderia ser uma espécie de salvador se realmente chegasse. Em termos alegóricos, é uma peça que trata do absurdo de colocar todas suas esperanças nessa espera e não agir por conta própria. O diretor Riccardo Milani incorpora o sentido do espetáculo na narrativa cinematográfica, embora esta aproximação não seja construída rapidamente. De início, o filme tenta criar momentos cômicos que contextualizem a situação inicial de Antonio e a condição inusitada da encenação do teatro dentro da prisão. Nem sempre tais passagens funcionam, como as tentativas de fazer humor com a dublagem de cenas eróticas e as primeiras aulas para Mignolo, Damiano e Christian (que não permanece até o fim). Na verdade, o drama se coloca de forma mais efetiva que a comédia quando as contradições da realidade prisional ganham o centro das cenas.

Por mais que o teatro tenha importância fundamental para a narrativa, Riccardo Milani não trabalha visualmente as particularidades da sua linguagem. É possível lembrar de “César deve morrer” dos irmãos Taviani, que também parte da premissa de encenar uma peça com detentos, mas se interessa pela tênue fronteira entre ficção e realidade. Logo, as comparações se esgotam na semelhança temática. “Obrigado, rapazes” tem mais interesse pela percepção da arte como libertação de um universo opressivo. À medida que os ensaios acontecem, Antonio precisa lidar com os preconceitos naquele local (os detentos optam pelo teatro por terem alergia à serragem e atribuírem yoga aos homossexuais, e a direção pensa que eles só conseguiriam montar uma fábula infantil simples) e com as dificuldades dos atores para darem vida aos personagens. Além disso, o roteiro também aborda as barreiras impostas ao sucesso da encenação, como a violência dos outros presos, as interferências dos carcereiros na duração dos ensaios e a falta de empatia por parte da diretora da instituição.

Da mesma maneira que os personagens de “Esperando Godot” conversam sobre temas filosóficos, os prisioneiros do filme também expressam as contradições de suas vidas e das atitudes daqueles que estão livres. A narrativa se esforça para quebrar estereótipos que poderiam resumir os detentos apenas pelos crimes cometidos, mas não consegue fazer isso com todos os personagens ou faz parcialmente. Aziz, vivido por Giacomo Ferrara, é humanizado ao ser apresentado como um imigrante árabe que sofre com a xenofobia, e Diego, interpretado por Vinicio Marchioni, deixa de ser o criminoso líder do presídio para demonstrar a dedicação pela arte em nome do amor pelo filho. Apesar da humanização, os dois são reduzidos somente a essas características e não são mais desenvolvidos. Já Mignolo, Damiano e Radu são caracterizados de modo ainda mais simplificado, pois Giorgio Montanini, Andrea Lattanzi e Bogdan Iordachiou encarnam homens que tem, respectivamente, grande paixão pela esposa, dificuldade de ler, escrever e falar sem gaguejar e uma ideia interessante para acrescentar à peça. Individualmente, eles não possuem a mesma força que possuem como um grupo.

São os momentos compartilhados por todos nos ensaios que produzem mudanças nos personagens. Em sintonia com o que Samuel Beckett escreveu, a jornada experimentada no filme tem tanto valor quanto a conclusão. A arte possibilita, por exemplo, a Damiano aprender a recitar um monólogo complexo, a Aziz reconhecer o tempo dos ensaios como a melhor experiência de seu dia a dia e a Diego dar vida às várias facetas do trabalho de um ator. É verdade que os obstáculos sempre se fazem presentes, já que os prisioneiros não conseguem deixar de ser quem são durante o espetáculo para criar os personagens, afinal são constantemente lembrados de sua condição e sofrem com maus tratos. Entretanto, os presos tem uma relação especial com a peça por compreenderem o sentido da espera em todos os momentos vividos na prisão, pois precisam esperar a hora da refeição, da visita e do cumprimento da pena. Em outras cenas, os cinco atores conseguem contornar as limitações espaciais do local para continuar ensaiando, passando o texto na sala de visitas, no pátio ou até nas janelas das celas à noite.

Se a preparação da peça proporciona a união dos seis homens e a valorização da arte, a encenação nos palcos coloca em questão o sentimento geral de “Esperando Godot“. A melancolia absurda da espera por algo que não se confirma como salvação dá o tom das apresentações dirigidas por Antonio ao redor da Itália. Por um lado, Aziz, Diego, Radu, Mignolo e Damiano experimentam o prazer e a satisfação de ver seu trabalho realizado com sucesso, além de também desfrutarem dos louros recebidos por familiares e estranhos na plateia. Por outro, eles notam que a liberdade sentida nos palcos é limitada àquele espaço porque precisam retornar à prisão e ao mesmo tratamento desumano já vivido anteriormente. Para isso, são bastante emblemáticas as sequências em que os cinco detentos passam pela revista e não podem permanecer com os presentes que ganham. Mesmo assim, a reação cômica encontrada por eles para enfrentar a situação é uma resposta eficiente à contradição a que estão submetidos.

O desenvolvimento dos paralelos entre peça teatral e filme pode até levar tempo significativo para se expressar efetivamente, mas alcança um resultado evidente no clímax. O Antonio, vivido por Antonio Albanese, pode parecer menos importante em comparação com os demais personagens, porém tem um arco dramático próprio que o faz ganhar um momento de brilho artístico que tanto almejava desde a última peça em que participou. E, acima de tudo, “Obrigado, rapazes” se apropria do trabalho de Samuel Beckett e o ressignifica na realidade dos detentos para o desejo de poder esperar pela liberdade. Sob certos sentidos, eles até conseguem experimentá-la pelo viés alegórico da arte e pela busca concreta do que lhes falta. Porém, da mesma forma que Estragon e Vladimir são levados a perceber que Godot não chegará, Diego, Aziz, Damiano e Mignolo são levados a descobrir que sua liberdade estará condicionada às condições sociais em que estão inseridos.

* Filme assistido durante a cobertura do Festival de Cinema Italiano 2023.