Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“OH, CANADÁ” – O cinema transcendental

Um dos maiores desafios da arte (não apenas cinematográfica) é expressar o inefável: traduzir de forma empírica aquilo que existe de mais abstrato, como sentimentos, emoções e reflexões, fazendo com que o público seja levado de alguma forma a interagir com tais abstrações. Enquanto pensador da sétima arte, Paul Schrader nominou de “cinema transcendental” aquele que se propõe, a partir de determinados parâmetros estilísticos, a evocar o transcendente. OH, CANADÁ é fiel ao conteúdo desse cinema, mas foge à forma que o define.

Leonard Fife é um professor e documentarista renomado que, acometido de grave doença e já idoso, decide conceder uma entrevista a um de seus alunos. Sua intenção com isso é, na presença de sua esposa, desconstruir a figura exemplar da qual é rotulado, expondo seus erros deliberadamente sem filtro algum.

(© California Filmes / Divulgação)

Em 1972 – ou seja, antes de “Taxi driver”, filme que roteirizou -, Schrader publicou “O estilo transcendental no cinema: Ozu, Bresson, Dreyer”, no qual, analisando as obras desses cineastas, identificou características comuns, notadamente um estilo minimalista de filmagem, narrativas contidas (tramas com poucas personagens, que são pessoas comuns enfrentando dilemas de caráter existencial ou espiritual), uso de silêncio com fins contemplativos e atuações sóbrias do elenco. Contudo, “Oh, Canadá” não segue a cartilha à risca.

A mise en scène contém aspectos realmente minimalistas, como ao evitar movimentos de câmera e ao usar planos longos, porém a interferência do diretor é maior do que a costumeira. O protagonista (que é deveras interessante, dada a previamente confessa dubiedade de caráter) é interpretado em duas versões a partir da idade: Richard Gere e Jacob Elordi. Em tese, a cada um caberia os respectivos tempos diegéticos (presente e pretérito); em alguns momentos, todavia, Schrader coloca Gere como a versão jovem para expressar o quão confusas estão as memórias de Leonard, e, da mesma forma, Uma Thurman aparece tanto como Emma (a esposa no presente) quanto como uma amante episódica no passado. A fotografia também é elemento de realce na medida em que o uso de preto e branco no pretérito diegético enfatiza as memórias fragmentadas. No presente, a iluminação limitada denota uma atmosfera lúgubre.

A narrativa, por outro lado, é bastante contida: debilitado, Leonard pretende se desnudar diante da esposa tendo a câmera por testemunha. Aqui, o cinema é bastante transcendental, pois a revisitação ao passado consiste na verdade em um desvalor moral que o protagonista faz de si. Leonard não quer ser venerado pelo seu trabalho, mas, na seara da sua intimidade, admitir o quanto errou. Não fica claro se há um arrependimento, mas sim uma vontade de escancarar um julgamento moral negativo sobre os próprios atos, de modo que suas confissões funcionam como uma redenção. Não há maiores desenvolvimentos quanto aos coadjuvantes, como Diana (Victoria Hill), Malcolm (Michael Imperioli) e Sloane (Penelope Mitchell), exceto quando, de algum modo, Leonard interage ou se identifica com eles. Nesse sentido, o roteiro de Shrader, ainda que partindo do romance escrito por Russell Banks, é voltado ao transcendental, já que a narrativa é centrada em abstrações como censura moral, penitência e salvação.

Em sua segunda parceria com Schrader (a primeira foi “Gigolô americano”), Gere é filmado em closes e fala com pausas de pesar, mas sua atuação é mais enérgica do que se esperaria em um filme do cineasta (valendo o mesmo para Thurman). Suas interpretações são boas, mas não enriquecem o filme porque são redundantes em relação à narrativa, que é suficientemente dramática por si mesma. Ainda que, tematicamente, não saia do cinema transcendental, o estilo do longa passa por um desvio, pois o drama sofrido pela dupla principal é traduzido por atuações fortes, escancarando (ao invés de sugerir) o seu sofrimento (o que seria dedutível dos próprios fatos) – de Leonard, por se livrar da culpa ao assumi-la e desvelar qualquer véu de nobreza através do qual poderia ser visto; de Emma, por ver o amado esposo sentindo dor física, em estado extremamente frágil (a disparidade com sua versão como professor é gritante), e, por vontade própria, emocional também. Curiosamente, não se sabe o quanto o que ele diz é verdade e o quanto é fruto de memórias turvas ou efeito de medicação, mas o que importa é a culpa confessada.

Oh, Canadá” foge à simplicidade que caracteriza o assim denominado “cinema transcendental”, inclusive destoando de outros filmes do cineasta. O que o desloca desse estilo é a sua tentativa de provocar diretamente a emoção do espectador (por exemplo, pelas atuações) ao invés de direcioná-lo para uma experiência mais profunda. A despeito do conteúdo, que poderia ser idêntico, a forma adotada chama a atenção para si e, nesse sentido, o transcendental repousa mais no tema do longa (que, de fato, aborda o imaterial) do que no que ele estimula. Assim, o instrumento que poderia catapultar o espectador à transcendência é ele mesmo a própria transcendência, o que significa não uma sessão edificante, mas um drama comum – com um protagonista interessante e boas atuações, mas longe de um ideal catártico.