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“ÓRBITA 9” – O mito da caverna levado ao espaço (ou não)

A Alegoria da Caverna, de Platão, já foi referenciada inúmeras vezes no cinema (“Matrix” e “O show de Truman” são alguns exemplos). Em ÓRBITA 9, nova produção original da Netflix, esse tema é abordado num drama que engloba elementos de outros gêneros como a ficção científica e o romance.

No futuro, Helena (Clara Lago) é uma tripulante de uma nave colonizadora com destino ao planeta Celeste. Devido a problemas no oxigênio de sua nave, ela vai encontrar o engenheiro Alex (Alex González). A partir daí, Helena embarca numa jornada romântica e surpreendente.

Minha recomendação seria que o espectador assista a esse filme sem ter visto previamente nenhum trailer ou teaser, pois a sensação de descobrir as coisas junto da protagonista se torna mais interessante. Quanto à obra em si, é coerente o trabalho de Hatem Khraiche no roteiro, porém com ressalvas. As boas construções dos personagens e diálogos que prezam por facilitar o entendimento do enredo são um ponto positivo. Os três atos dessa obra são bem divididos, e de forma alguma confusos. O final, por mais aberto a reflexões que seja, ainda é consistente com o que foi apresentado no filme, não sendo desconexo com o universo, nem com os personagens estabelecidos.

As duas atuações principais entregam bem o necessário. Clara Lago faz o tipo de pessoa que realmente passou sua vida inteira numa nave, e destaca sua interpretação com sutilezas como a inocência ao encontrar Alex pela primeira vez contrastada com a atitude instintiva logo em seguida. O olhar longe faz da personagem uma presença leve e quase distante nas cenas com mais de uma pessoa. Alex González interpreta, desde seu primeiro frame no filme, alguém desconfiado e que esconde algo. Ele é capaz de se revelar ao longo da trama, numa espécie de processo de conhecimento mútuo entre o espectador e Helena.

Há um grande tema que permeia esse filme, como mencionado no primeiro parágrafo dessa crítica: a Alegoria da Caverna. O processo de descobrimento do mundo exterior pela personagem faz da película um material bem interessante. Além dessa camada mais óbvia, que pode ser desprendida sem grandes dificuldades, existem outros questionamentos a serem levantados como decorrência da Alegoria, como por exemplo as necessidades e impulsos humanos. É a própria natureza da personagem que a liberta de seu estado de prisão, afinal, se não houvesse envolvimento com Alex, ela não sairia de sua inércia existencial. Sua atitude ousada, por assim dizer, é a chave para um autodescobrimento amoroso e o início de uma relação sensorial com o mundo.

No quesito fotografia, o filme é inconstante entre acertos e erros. Algumas soluções visuais são bem elaboradas, como o jogo de luzes vermelhas em Alex logo no começo do longa, indicando certa periculosidade. Porém, em outros momentos há precariedade nesse sentido, como na cena de perseguição, onde parece haver falta de elementos que realcem o que está na tela. O design de produção traz referências de outros sci-fi’s. A nave de Helena é claramente inspirada na Millenium Falcom, de “Star Wars” e na Nostromo, de “Alien, O Oitavo Passageiro”. Além disso, a ambientação futurística é mais contida e muito se parece com os dias de hoje, não sendo exageradamente tecnológica e cheia de bobagens brilhantes. Isso é bom, pois ajuda a centrar a trama em coisas que são recorrentes mesmo em nossos dias, como o relacionamento amoroso e ainda a falta dele. As “Garotas de Bate-Papo” evidenciam uma sociedade distópica onde a falta de relacionamentos cria laços entre desconhecidos em cabines e almas desesperadas por uma terapia onde elas podem se abrir como bem entenderem.

Existem incômodos em “Órbita 9”: até onde vai o conhecimento social de alguém que cresceu numa nave, isolada de tudo e todos? Por mais que a tônica do filme seja levar o espectador a crer na inocência de Helena, em uma de suas primeiras interações sociais ela se sai muito bem, como se fosse familiarizada com a situação. O núcleo narrativo da “organização maléfica” é mal explorado e fica quase como que jogado no meio da história. Porém, pode-se dizer que esse longa é uma história romântica que busca superar as circunstâncias adversas para que possa existir o amor. Há sacrifícios mútuos (no caso de Helena, inclusive físicos) que tornam a narrativa instigante para o público.

Uma construção adequada dos personagens e do seu universo, um argumento original e reflexões que não fogem de sua proposta são destaques de “Órbita 9”, que não é um excelente sci-fi, mas cumpre o que se propõe. A mistura de gêneros inserida em uma trama a princípio envolvente cria uma atmosfera que seduz os que apreciam um bom romance, e também os mais chegados da ficção científica. Definitivamente uma obra onde seus acertos não superam seus erros, mas que não deixa de ser eficaz ao encontrar sua mensagem com o público-alvo.