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“ORFEU” (1950) – A eternidade da lenda: o sacrifício e a imortalidade

Na mitologia grega, Orfeu, trovador da Trácia, encantava a todos com seus cantos. Apaixonado por sua mulher, Eurídice, ele desceu para o inferno para recuperá-la da morte. Sua tarefa foi parcialmente exitosa: poderia voltar para o mundo dos vivos com a esposa, com a condição de não mais poder olhar para ela. Quando Orfeu olhou para Eurídice, descumprindo a condição estabelecida, foi destruído pelas Bacantes. Após narrar a lenda clássica, ORFEU, o filme, questiona onde acontece – em que época – a sua história e afirma que “o privilégio das lendas é serem eternas… se assim quiserem”.

A versão cinematográfica de 1950 não é uma repetição do conto clássico. No longa, Orfeu não é um cantor, mas um famoso poeta, desanimado com sua vida. O protagonista não é loucamente apaixonado por Eurídice, mas encantado com a Princesa da Morte, que conhece logo nos primeiros minutos. Por ciúme, a Morte leva Eurídice, fazendo com que Orfeu vá ao inferno para encontrar ambas.

O espírito da tragédia grega é mantido como uma história de sacrifício, um épico que mescla romance com aventura. Porém, o surrealista Jean Cocteau não quer dar à lenda uma simples adaptação audiovisual; seu roteiro é uma adaptação narrativa também. Quando questiona, no começo, onde e em que época a história se passa, faz com que o espectador perceba tratar-se da França pós-guerra. A tranquilidade do café em que Orfeu se encontra é irrompida por uma confusão geral, quando a polícia entra para pacificar o contexto conflituoso. Trata-se de clara alusão à invasão nazista sofrida pela França, que foi tomada pelas tropas de Hitler.

(© Janus Collection / Divulgação)

Também os pilotos de motocicleta, que na verdade trabalham para a Morte, têm uniforme semelhante ao dos militares nazistas, associando o nazismo à morte. Igualmente, o submundo, filmado com técnicas vanguardistas para a época, parece um local intermediário – confuso, desconfortável e esquisito, mas em reconstrução pelos rapazes se oferecendo para consertar os vidros quebrados. É a França do pós-guerra, tentando se reconstruir, com alguns mais adaptados (Heurtebise, que se locomove mesmo estático) do que outros (Orfeu, que tem dificuldade na locomoção). A arquitetura do local simula ruínas de visual antigo, uma menção gráfica à origem do roteiro de Cocteau (o cineasta coloca também estátuas gregas no jardim da casa de Orfeu, mais uma referência imagética às raízes de sua história).

Como Cocteau não quer copiar a lenda grega, seu Orfeu não é um trovador apaixonado, mas um poeta deprimido. Jean Marais deixa clara a inveja que o protagonista sente de Cegeste (Edouard Dermithe), poeta de apenas dezoito anos adorado por todos. Não que Orfeu não seja célebre (pelo contrário, tem privilégios até mesmo com a polícia), mas não tem a alegria jovial que outrora tivera. Considerando-se entre o sucesso (que o tinha adormecido, considerando vital, então, despertar) e a morte, é justamente a Morte, incorporada em uma mulher que ele chama de Princesa, que dá a ele um novo respiro.

A Eurídice de Marie Déa é doce e preocupada com o marido, querendo dele apenas atenção e afeto. É o oposto da Princesa da Morte: em interpretação inicialmente frígida, María Casares faz da sua personagem uma mulher misteriosa que se comunica apenas no imperativo. Contudo, é justamente isso que Orfeu procurava; cansado de sua posição proeminente no lar e no seio social, ele finalmente encontra alguém que o subjuga, não respondendo seus questionamentos e aparentemente não se preocupando com ele. O amor de Orfeu pela Morte é recíproco, mas ela só o visita quando não pode ser vista. Eurídice também é objeto de amor, mas de Heurtebise (François Périer), que não é correspondido.

No quarteto amoroso, Cocteau cria uma nova camada interpretativa, referente ao romance. Como metáfora para a dificuldade na formação de casais de diferentes classes sociais, Heurtebise se apaixona por Eurídice, porém ele, como mero chofer, não teria condições de ascender à classe social da moça, que, além disso, era casada – evidentemente, tudo precisa ser enxergado com as lentes da época. Orfeu tampouco consegue alcançar a Morte, platonicamente alçada ao status de Princesa. Como resultado, o casamento de Orfeu e Eurídice não é plenamente feliz, o que não significa que ele lhe é indiferente. Marais convence como um marido em luto, deixando, todavia, uma brecha para que a ida ao inferno não seja um dissabor, mas uma chance para encontrar o amor.

As luvas que funcionam como chave do submundo, na verdade, foram uma maneira pela qual o estúdio evitou o contato dos artistas com material tóxico. Através de reverse motion, elas entram automaticamente nas mãos de seu portador, dando uma aura mágica compatível com a trilha do renomado Georges Auric. O inferno é acessado através dos espelhos, como se as mazelas que assolam o mundo fossem um reflexo do próprio mundo. Assim, a lenda grega não é filmada como uma tragédia romântica, mas como uma visão desesperançosa da realidade, na qual o artista só consegue ser imortal se fizer sacrifícios.

* Filme assistido durante a cobertura da 11ª edição do My French Film Festival.