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“OS DELINQUENTES” – Ladrões de tempo [25 F.Rio]

Histórias sobre roubo já foram produzidas aos montes no cinema. “Império do terror“, “O grande golpe“, “Os implacáveis“, “Golpe de mestre” e “Onze homens e um segredo” são exemplos que já trataram dos preparativos da ação, das investigações policiais ou similares e das consequências desastrosas do crime. Tais abordagens costumam ser as mais frequentes e OS DELINQUENTES se inspira em cada uma delas, porém faz o roubo ser um gatilho para a discussão dos diferentes sentidos que o tempo pode assumir em nossas vidas. Por isso, os caminhos trilhados pelo filme surpreendem e vão além da premissa básica.

(© Vitrine Filmes/ Divulgação)

O assalto é praticado por Morán para tentar fugir das normas sociais e das obrigações de seu trabalho. Após o crime, ele desaparece por alguns dias e experimenta um modo de vida alternativo ao que estava habituado. Enquanto isso, Román esconde uma grande quantidade de dinheiro que não lhe pertence e teme ser descoberto. O destino e o delito cometido unem os dois homens da mesma maneira que Román tem sua vida transformada ao conhecer uma mulher.

Em tese, a narrativa se estrutura em torno do subgênero heist films (filmes de assalto) quando faz sua primeira parte ser sobre o golpe dado por Morán em um banco, levando alguns milhares de dólares. Mais do que detalhar os planos para a ação, o filme aborda os desdobramentos do crime envolvendo também Román que se torna cúmplice. À primeira vista, o planejamento poderia ser perfeito e garantir dentro de três anos e meio uma quantia em dinheiro que permitiria a dupla não precisar mais trabalhar. No entanto, a perfeição não existe e os dois personagens se veem às voltas com eventos que não previram. Morán pode não ter tanta facilidade na prisão e Román poderia se sentir pressionado a revelar seu apoio ao crime. Nesse ponto, é curioso perceber que a narrativa transita pelo protagonismo dos dois homens, parecendo que vai seguir apenas um deles até reorientar a rota e passar a acompanhar o outro ou alternar entre ambos.

Quando o crime é cometido, o diretor Rodrigo Moreno surpreende as expectativas do público. Em sua filmografia, ele costuma abordar o peso da rotina do trabalho e da via urbana em grandes centros para o bem-estar de seus personagens. Não seria diferente em seu mais recente filme, que faz o roubo ser o ponto de partida para discutir o dilema entre viver frustrado em função de seu trabalho ou arriscar uma mudança radical em nome da satisfação pessoal. Dentro desse questionamento, o bom aproveitamento ou não do tempo é essencial. Pode ser algo verbalizado por Morán, que diz preferir passar três anos e meio preso e depois aproveitar uma vida mais reconfortante sem se preocupar com dinheiro a ter que trabalhar em seu emprego por vinte e cinco anos. Pode ser também algo encenado pelo cineasta nas sequências em que Morán e Román caminham pelas ruas de Buenos Aires indo ou voltando do trabalho. Em especial, a abertura adota um tom observacional ao fazer a câmera seguir o tesoureiro do banco em sua rotina diária monótona sem diálogos ou com pouquíssimos palavras ditas.

A questão do tempo não aparece apenas no prolongamento da duração de uma sequência em que fatos muitos comuns se sucedem. Além disso, Rodrigo Moreno traça paralelos entre os dois protagonistas de modo a realçar que eles passam por conflitos semelhantes em suas vidas, ambos afetados pela chance de tornar suas existências mais significativas sem passar tantas horas usando o celular à espera de alguma novidade vazia nem se definir exclusivamente como pessoa a partir da profissão que tem). A montagem traduz esse paralelismo ao fazer transições graduais de uma cena a outra através do transbordamento de efeitos sonoros (o temor de Román ser descoberto como cúmplice é retratado pelo som crescente de instrumentos musicais dos alunos de sua namorada mostrados na cena posterior), de imagens formadas gradativamente sob aquelas que faziam parte da sequência anterior (o momento em que Román fica sem dormir em sua casa é seguido pela viagem de carro de Morán pelo interior) e da técnica de split screen de dividir a tela para mostrar ações simultâneas dos dois homens. Assim, os dois homens parecem dividir o mesmo tempo em que devem se entregar às obrigações profissionais sem poder aproveitar algo distinto.

Se a vida na cidade voltada somente para o trabalho pode tornar os indivíduos infelizes, a vida sob outros moldes pode ser uma válvula de escape que renova as energias ou até propõe uma possibilidade mais reconfortante. Então, a sequência em que Román pode experimentar um período no interior e em um lago confere sensações muito particulares para ele e para os espectadores. O personagem vivencia o tempo sem as pressões do urbano e faz conexões sinceras com outras pessoas que conhece no local, podendo descansar provisoriamente do sofrimento que carregava desde o assalto. Já o público pode experimentar uma quebra expressiva de ritmo e de dramaturgia do que estava assistindo até então, quase como fosse levado a contemplar um curta-metragem absolutamente diferente dentro do filme que se desenvolvia. Em termos estilísticos, esta mudança confere outra dimensão à experiência do tempo. Por mais que a duração dos planos e da sequência continue lenta, seu efeito deixa de ser opressivo para ser revigorante e libertador.

A partir do instante que Román acredita poder reformular sua vida para dar um sentido mais fortificante ao tempo, não sendo responsabilizado pelo assalto e encontrando em Norma um romance inesperado, a narrativa passa por outra reviravolta. Mesmo que sob outras condições, as dificuldades enfrentadas no banco continuam e a concretização de sua paixão esbarra em um obstáculo. Se a primeira parte do filme enfocava o crime e seus desdobramentos dentro de estilo de história de assalto, a segunda trata da busca por uma noção libertadora de tempo através de um modo de vida simples dentro de um melodrama. A nova virada de estilo é orgânica e se conforma a partir do surgimento de um triângulo amoroso, que é pontuado por uma trilha sonora carregada e por um dilema romântico no qual não há resolução fácil nem alguém para quem se torcer. Enquanto o espectador contempla a formação imprevisível de um melodrama, a questão da descoberta ou não do dinheiro levado pelo roubo se torna menor porque importa mais apreciar o desenrolar de um tempo vagaroso e prazeroso em uma fazenda.

Já que o tempo é o elemento mais importante de “Os delinquentes“, o desenvolvimento do tema atinge diversos âmbitos. O roubo do dinheiro abre espaço para o roubo ou a captura do tempo, pois é isso que norteia os arcos de Román e Morán, paralelos até nos anagramas que formam seus nomes. Os dois tentam possuir uma forma alternativa de guiar suas vidas, deixando de lado a velocidade dos centros urbanos, os vícios das tecnologias digitais e a rotina desgastante de trabalhos burocráticos. Norma é o símbolo dessa busca, mas como ela é uma personagem com vida e interesses próprios, não está à disposição como instrumento de satisfação dos objetivos dos homens. Sendo assim, os protagonistas concluem suas trajetórias tentando recuperar as experiências de um tempo perdido. Simultaneamente, Rodrigo Moreno “rouba” o tempo do espectador, uma vez que controla meticulosamente o tempo de cada cena, molda um filme de mais de três horas de duração e estimula o público a querer mais daquela experiência. Mesmo tendo mais de três horas de duração, é possível querer experimentar mais tempo daquele momento de banho no lago ou de canção na fazenda.

*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).