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“OS MORTOS NÃO MORREM” – Preguiça criativa [21 F.Rio]

Filmes de zumbi se popularizaram tanto na sétima arte que abordagens muito heterogêneas já foram feitas, desde terror, ação e até narrativas fantásticas com comentário sociais. Inclusive as comédias se interessaram por essas criaturas, como é possível ver em OS MORTOS NÃO MORREM, de Jim Jarmusch. Entretanto, não se poderia prever que o interesse do cineasta pela temática renderia uma produção nem um pouco engraçada, de ideias forçadas, personagens desinteressantes e um universo artificialmente concebido. Em suma, um poderoso fracasso.

(© Universal Pictures / Divulgação)

O palco da preguiça criativa é uma pacata cidade, onde uma série de estranhos e violentos crimes começam a acontecer. A solução da repentina onda de violência depende da dupla de policiais Cliff e Ronald, embora eles não estivessem preparados para a descoberta feita: o local está sendo tomado por zumbis, que se levantaram das suas tumbas para retomar as atividades quando vivos e se alimentar de carne humana.

Apesar de inúmeros problemas que contaminam a narrativa, há rascunhos de boas sacadas que poderiam divertir: a explicação absurda para a saída dos mortos das sepulturas ser o deslocamento do eixo da Terra; os sinais daquele incidente fantástico serem a maior duração do dia e os comportamentos incomuns dos animais; a caracterização dos zumbis ter o corpo deformado e decomposto com cinzas depositadas no interior da cabeça e liberadas após a decapitação; e a obsessão em vida daquele seres de se conservar após a morte e ser proferida entre resmungos (café, celulares, dentre outras). Ainda que não sejam originais, esses elementos poderiam entreter caso o universo diegético não desperdiçasse suas potencialidades e fosse pautado em uma artificialidade sem alma e personalidade.

Tais insucessos se devem, principalmente, às escolhas excessivamente autoconscientes e expositivas de Jim Jarmusch. Isso se observa, por exemplo, nas infelizes tentativas de fazer humor com a repetição de frases específicas ou a criação descuidada de situações nonsense. Não são engraçadas as piadas recorrentes com os dizeres “mate a cabeça” proferidos pelos personagens como instrução de sobrevivência, com as menções de possíveis ataques de um animal selvagem ou de vários pelos investigadores na área do primeiro assassinato, nem a previsão categórica de Ronald, de que os responsáveis pelos crimes seriam mortos-vivos antes de qualquer maior indício nessa direção. A comédia também se fragiliza por conta da montagem, que deixa o ritmo do filme apagadíssimo e prejudica ainda mais a dinâmica dos atores (eles parecem saltar de uma situação a outra sem nada que as conecte).    

Os prejuízos para o elenco extrapolam a montagem, pois também são provocados pela pobreza do roteiro. Alguns personagens são resumidos a características estereotipadas ou insuficientes: Tilda Swinton vive uma agente funerária de estranha caracterização física (um clichê na carreira da atriz) que tem um sotaque esdrúxulo, habilidades de samurai e o inexplicável hábito de falar o nome completo das pessoas com quem conversa; Bill Murray interpreta um policial sem vida ou individualidade que mal reage ou demonstra emoções frente aos acontecimentos; Adam Driver encarna outro policial na mesma condição do seu companheiro, sem identidade e conflito próprio, e apenas reafirmando que tudo acabará mal; e Caleb Landry Jones, que interpreta o frentista Bobby, é somente o nerd conhecedor de cultura pop que explica as regras de salvação naquele universo. Ao final, todas essas figuras são meros avatares que sofrem e respondem às ameaças, não tendo nenhuma jornada ou evolução dramática.

Os demais personagens passam pelo mesmo problema da falta de arco narrativo e ainda por outro obstáculo adicional: a completa inutilidade para qualquer momento da narrativa. O grupo de crianças dentro de um prédio está totalmente deslocado e desaparece abruptamente no terceiro ato; Steve Buscemi é um fazendeiro que, aparentemente, teria embates com outro homem, mas isso é logo descartado; Danny Glover está ali simplesmente para ser mais alguém famoso no elenco; e o trio de jovens recém-chegado na cidade, contendo Selena Gomez, entra em cena e sai inesperadamente sem fazer falta. A grande quantidade atores e atrizes não se justifica, especialmente os muitos nomes conhecidos desperdiçados por uma história que não vai a lugar algum.

Além de falhar na construção da comédia por incapacidade de inserir piadas ao estilo de filmes de zumbis, Jim Jarmusch também pontua exemplos de metalinguagem completamente forçados e destoantes do andamento da narrativa. São feitas referências a outras produções sobre as criaturas (alusões a George Romero e às convenções desse tipo de história), ao cinema em geral (sem qualquer justificativa se fala em “Senhor dos anéis“) e ao próprio fazer cinematográfico (Cliff e Ronald discutem sobre o desenvolvimento do roteiro e das decisões do diretor) – esse último aspecto é, decididamente, o mais grave, já que, por não ter nenhuma ligação com a diegese e com a linguagem estética, se torna um artifício prepotente e presunçoso. A deficiência no uso da metalinguagem, inclusive, afeta o uso inicial positivo da canção “Os mortos não morrem“, de Sturgill Simpson: ela se alterna eficientemente entre seu emprego diegético e extradiegético e ilustra bem o universo, porém se desgasta à medida que surge indiscriminadamente a cada momento comentada pelos personagens.

Diante de tantos problemas narrativos e de desenvolvimento dos personagens, a sensação ao final de “Os mortos não morrem” é de desperdício. Desperdiça-se um numeroso elenco conhecido e qualificado. Desperdiçam-se as eventuais possibilidades artísticas da trama. Desperdiça-se a inusitada combinação entre filme de zumbi e a marca de Jim Jarmusch. Principalmente, desperdiça-se o tempo do espectador com uma obra que vai se enfraquecendo a cada minuto que passa.

*Filme assistido durante a cobertura da 21ª edição do Festival do Rio (21th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).