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“OZARK” [3ª TEMPORADA] – A farsa do sonho americano

Nas duas primeiras temporadas, OZARK contou como o idealizado sonho de vida norte-americano pode ser uma farsa. As crenças de uma família unida e emocionalmente integrada, do sucesso pelo trabalho individual, da constituição de um legado e do poder da livre escolha são contaminadas pelo dinheiro, ambição e crime. Na trajetória dos Byrdes, os personagens são movidos por cálculos matemáticos, a família se desagrega deixando de lado afetos e emoções, a prosperidade econômica ocorre ilegalmente e a liberdade de escolha é negada por uma rede de indivíduos formada pelas consequências dos atos de uns sobre os outros.

(© Netflix / Divulgação)

A família protagonista, ao se mudar para o lago Ozarks, no Missouri, interferiu na jornada dos moradores locais: acentuou a linha tênue entre sobrevivência dura e vida criminosa dos Langmore, especialmente em relação aos primos Ruth e Wyatt; destruiu a união entre o pastor Mason e sua esposa grávida, manipulando a fé em nome de seus interesses escusos; dizimou a situação de profissionais da área, como Rachel e Sam, ao incoporar seus negócios como fachada para o cartel de drogas mexicano; e intensificou a violência do casal Jacob e Darlene Snell, traficantes de heroína agora envolvidos com um crime organizado em escala internacional. Tudo isso ainda levando o FBI e bandidos do México para o paradisíaco cenário da região, entrecortado por lagos e rios de grande extensão.

Na terceira temporada, Marty e Wendy utilizam o recém-aberto cassino para aumentar a capacidade de lavagem de dinheiro para o cartel Navarro. Aparentemente, estão em um momento seguro após superarem as ameaças do agente Petty, de Code Langmore e os Snell, bem como criarem um sistema de operações envolvendo Ruth, a máfia de Kansas City, a advogada Helen Pirce e até a aceitação dos filhos Charlotte e Jonah. Entretanto, essa tranquilidade é enganosa, já que uma guerra no tráfico, novas investidas da polícia e problemas pessoais para os Byrdes testam as instáveis alianças e colocam novos riscos para os negócios e para as vidas dos protagonistas.

Nos últimos episódios lançados, a farsa do american way of life agora atinge o casamento de Marty e Wendy. Por vezes, essa instituição se revela uma parceria de sócios interessada no sucesso de uma empresa, por outras, se reaproxima de uma relação amorosa (apesar das frases “eu te amo” e as carícias parecerem deslocadas e sem o sentido primordial intacto). Tamanha instabilidade se traduz nas divergências de planos para o futuro entre eles: ele se dedica a pensar na sobrevivência da família até o instante em que puderem fugir, ela se esforça em expandir e legitimar os negócios do chefe para conseguir o mínimo de segurança jurídica para si mesmos – dessa discordância quanto a correr ou não mais riscos, os dois se aprofundam em mentiras, segredos, acordos perigosos com inimigos, sabotagem do parceiro e esquemas elaborados clandestinamente.

É assim que o cerco se fecha sobre os dois personagens, fazendo a justiça (a agente Maya Miller) e o crime (os funcionários de Navarro e o cartel rival). Para além das ameaças externas, o percurso emocional de ambos também se impõe como um perigo contínuo: Marty abandona parcialmente uma frieza matemática para se tornar mais emotivo e exausto com o trabalho, até ser ameaçado brutalmente por Navarro; Wendy deixa de ser tão emocional e preocupada com os filhos para se transformar em alguém tão ardiloso que pode prejudicar quem quer que seja e usar a violência sem hesitar, até sofrer com os problemas criados pelo irmão Ben.

Embora a chave dramática da série se desenvolva em torno do casal principal, o mesmo não se aplica aos coadjuvantes. Em geral, a temporada se destina a Marty e Wendy, enquanto os demais personagens são desperdiçados com a falta de arcos narrativos poderosos como aqueles vistos anteriormente. Ruth é deixada em segundo plano sem os conflitos evocados por sua família e o talento de Julia Garner fica restrito aos embates com Frank Jr.; Darlene e Wyatt se enfraquecem ao também perderem sua base familiar e se aproximam de maneira forçada até que os desentendimentos com a família Byrde devolvam importância a eles (ainda que Lisa Emery mantenha a força de sua imprevisibilidade violenta); Helen Pierce parecia estar sendo mais desenvolvida na relação com a filha, mas a dualidade entre proteger a família e avançar seu trabalho é muito inconstante; Charlotte e Jonah continuam não tendo conflitos próprios muito desenvolvidos, aparecendo esporadicamente os efeitos dos negócios dos pais sobre eles.

Da mesma maneira, o contraste entre a idealização do sonho americano e a realiade nua e crua não aparece tão evidente na ambientação de Ozarks como já havia sido. Nas temporadas anteriores, era mais perceptível a diferença entre a beleza do lago ao redor da cidade e a fotografia azulada, sombria e melancólica evocativa da brutalidade e da infelicidade em torno de personagens criminosos ou moralmente ambíguos. Dessa vez, a preferência é tornar a iluminação realista em locações internas, algo que simplifica a composição visual dos episódios.

Mesmo assim, existem algumas cenas esteticamente expressivas, principalmente aquelas que conformam o arco de Wendy. A visita à antiga casa no primeiro capítulo traz novamente uma paleta de cores soturna para representar como sua ambição rompe com a vida comum que possuía; já a canção “Time for me to fly” de REO Speedwagon, no sonho dela e no encerramento do terceiro episódio, simbolizam a autonomia desejada pela mulher. Os dois momentos são potencializados pela atuação de Laura Linney, o destaque permanente do elenco na temporada dando vida à nuance ardilosa da personagem sem esquecer os roupantes emocionais em ocasiões específicas.

Para o bem e para o mal, uma das sessões de terapia em que Marty e Wendy discutem na frente da psicóloga é sintomática da terceira temporada de “Ozark“. Eles esquecem onde e com quem estão e gritam xingamentos pessoais, bem como revelações comprometedoras da lavagem de dinheiro, um retrato de como a série se concentra nos protagonistas e esquece os coadjuvantes do entorno. Nada que não possa ser remediado no último capítulo, quando novos confrontos e alianças sugerem a recuperação dos esquecidos e a frase de Navarro amarre as possibilidades da quarta temporada. Afinal, trata-se de “um novo começo”.