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“PALIMPSESTO” – E daí? [47 MICSP]

Quando Tellu diz para Juhani que ele vai se arrepender, sua réplica é um sábio “e daí”. Naquele momento, ele aprendeu que todas as pessoas são egoístas de algum modo e, sobretudo, que não é possível romantizar uma hipotética volta ao passado. Em PALIMPSESTO, Tellu, diferentemente de Juhani, desafia esse dogma e insiste em reescrever a própria vida. É o que ela mais deseja, inclusive contra o bom-senso, respondendo também com um “e daí”.

Os octogenários Juhani e Tellu dividem um quarto em uma instituição na qual podem, mediante um tratamento médico, rejuvenescer. Os dois, muito diferentes, constroem uma amizade, embora tenham visões completamente distintas sobre as razões e as consequências relativas ao rejuvenescimento.

(© Thinkseed Films / Divulgação)

Com essa ideia fascinante, a obra parte da ficção científica para construir um drama profundo sobre recomeço e refazimento da própria trajetória. Ao invés de voltar no tempo, a trama é mais simples e, justamente por isso, mais complexa; ao invés de mudar um momento pretérito para ver suas repercussões, às personagens são dadas segundas chances para suas vidas como um todo, a partir de determinada idade. O que é relevante não é a óbvia inexistência de segundas chances, mas o exercício hipotético de pensamento que leva o espectador a refletir sobre duas questões: por que rejuvenescer? O que fazer após rejuvenescer?

No caso de Juhani e Tellu, as duas perguntas são respondidas à medida que a trama se desenvolve, o que torna a narrativa da diretora e roteirista Hanna Marjo Västinsalo cada vez mais envolvente. Juhani pode parecer contraditório, dada a condição de sua esposa, porém quanto mais ele expõe a sua motivação, mais seu arco se torna tocante. Por sua vez, a motivação de Tellu é mais sutil. Essa contraposição faz sentido quando se observa, por exemplo, a montagem: enquanto ela dança e sai para beber, ele faz prova e é o último a terminá-la; enquanto ela se diverte em uma balada eletrônica, ele resolve problemas de seus estudos com colegas em um bar tocando jazz. A montagem paralela, assim, é importante instrumento de contraste das personagens, que, mesmo unidas em propósito, têm condutas muito distintas (ambos interagem com outras pessoas quando vão ao hospital, mas de maneira absolutamente distinta).

A oposição não está apenas na forma. Antti Virmavirta e Leo Sjöman, em igual medida, transmitem em Juhani um homem de poucas palavras e personalidade intelectual; Riitta Havukainen e Emma Kilpimaa incorporam Tellu como uma mulher falante e bem corporal. Ele gosta de astrofísica; ela, de ginástica. Ele tem familiares; ela é solitária. Ele enxerga um retorno a 1969 com um encanto pela ciência; ela, como um retrocesso às conquistas femininas. A construção das personagens é rica e serve de ponte às duas questões apontadas. Na cena em que assistem à televisão juntos, um curto diálogo é capaz de justificar o comportamento deles antes do tratamento e depois dele. Mais do que isso, a despeito de terem visões de mundo e comportamentos diametralmente opostos, Tellu e Juhani constroem um vínculo de companheirismo e amizade, como quando ela o ajuda a descer a escada ou quando ele a ajuda a superar a alta alcoolemia. Esse elo fraterno foge ao que se espera, principalmente considerando o potencial do backstory de cada um (a relação dele com Matilda e com Saara, o enigmático passado dela), mas encerra com vigor a narrativa.

Não se pode desconsiderar escolhas pouco justificáveis (no mínimo, desnecessárias) da direção, como os planos semiabstratos que traduzem o rejuvenescimento e a ocultação inicial do rosto do médico. Entretanto, verifica-se um apurado uso da fotografia, por exemplo, no hospital, em que é bastante clara (tendendo ao monocromático com as maquiagens, a barba de Juhani e os cabelos brancos), claridade que é interrompida com o casaco de Juhani em um beat narrativo específico. Igualmente, quando Tellu está no chuveiro, o cenário é levemente amarelado, representando imageticamente sua satisfação naquele momento, ao passo que seu colega de quarto se insere em um azul tão escuro quanto a sua tristeza. Outro destaque da direção é um trabalho usado no foco, como no uso além do comum de racking focus para transmitir a sensação de atordoamento das personagens – e os enquadramentos têm a mesma função. A ideia é estimular a imersão: quando a dupla vai dormir, o enquadramento é de plano fechado no aparelho auditivo e os sons diegéticos são concernentes ao ronco e ao zumbido. Outra cena imersiva é a que Tellu está em um beco, na qual são usados rack focus, montagem acelerada e câmera na mão.

Palimpsesto” é um filme formidável que consegue trabalhar de forma estimulante assuntos complexos. A menção a Yuri Gagarin, inclusive musical, não é à toa. O cosmonauta entrou para a História como o primeiro ser humano a viajar pelo espaço. Sua misteriosa morte foi, pelo que se sabe, resultante de um acidente em um teste de rotina. Gagarin pode ter tido arrependimentos em sua vida, mas a viveu correndo os riscos de se arrepender. Se lhe dissessem que poderia morrer na viagem espacial, sua resposta talvez fosse um singelo “e daí?”.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).