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“PARA’Í” – A beleza da emancipação natural

A questão indígena sempre foi um enorme porém da nossa constituição social. Fundamentais para a formação social, não há como negar a transformação dos índios em estrangeiros de suas próprias terras, tomadas por ideologias de controle arcaico. Essa última também se faz bastante presente no cinema, instrumento de conscientização que, se ao longo de anos hesitou olhar para elas, em PARA’Í elege tais vítimas como verdadeiro alicerce.

Deslocada dentro de sua escola, a pequena Pará é habitante de uma humilde aldeia, onde vive com os pais e seus irmãos. Curiosa, ela tenta entender os conflitos que a rondam e se conectar com as próprias raizes. Ao entrar em contato com uma semente bastante particular, ela parte em uma jornada de auto descoberta, tentando germinar a própria essência em meio a uma terra de frutos escassos.

Dirigido pelo estreante Vinicius Porto, o filme se inicia com o registro em celular de uma brincadeira infantil. Mesmo que inconscientemente, esse tipo de recurso já questiona o diálogo entre a realidade e a ficção, que tanto coexistem no projeto. É como se a direção refletisse sobre a espontaniedade da câmera como instrumento de captação, manifestando uma importância mais imediata na preservação de culturas ameaçadas. Tem-se a antecipação de uma narrativa bastante naturalista, mas que nem por isso deixa de misturar diferentes linguagens de construção.

(© Descoloniza Filmes / Divulgação)

Em quantos graus diferentes podemos pensar em uma elitização da filmagem cinematográfica? É possível identificar esse questionamento por detrás do experimento feito por Vinicius, que optou pela comunidade guarani do Jaraguá para conduzir a sua produção.

Com o intuito de ensinar os nativos a manejar tecnologias de registro audiovisual, a iniciativa coletiviza a realização do longa ao colocar as suas personagens como próprias idealizadoras, rompendo a barreira entre objeto e estudioso. O diretor permite que a história se adapte conforme a vontade das personagens analisadas – todas reais e habitantes da região apesar dos nomes fictícios -, e borra a margem entre a realidade e a performance.

Isso revela a beleza particular do uso de não atores, que mesmo distantes de uma esfera mais dramatúrgica, infectam o fazer com a genuinidade que imprimem ali. É principalmente o caso da jovem Monique Ramos Ara Potty Mattos, protagonista que vive a pele literal da figura que interpreta. Guiada por seu ímpeto de descoberta, o trabalho dificulta a divisão entre a atuação e a veracidade, transparecendo traços muito genuínos na forma como ela se deixa encantar por signos concretos do roteiro.

Para além do debate sobre crença, que a obra também traz, esse fator último insere Pará em um lugar de necessária problematização, que questiona a representação histórica pela qual os indígenas sempre foram aprisionados. Segundo o olhar social hegemônico, existiriam eles apenas em um campo arquetípico – reservado a figuras aprisionadas em historiografias de ressignifcação tardia – ou seria possível um desenvolvimento maior que os emancipe de dentro para fora, permitindo serem eles os centrais da própria recuperação?

Esse dilema fica sutilmente traduzido na câmera de Porto, que pega os espaços e coadjuvantes tal como eles lhe são dados, e os entrelaça às páginas projetadas pela escrita, que mesmo em uma dimensão mais dramática prezam pela carga dos não atores e se baseiam em situações daquele cotidiano. Tudo isso converge muito bem para o simbolismo do milho colorido, simbologia que intercambeia a projeção de uma mente infantil e uma manifestação da própria natureza, gerando a curiosidade que move a transformação de Pará em seu transmutar pelas terras destruídas, em busca de um real pertencimento.

Sendo assim, Vinicius faz de seu “Para’i” um exercício de mistura linguística e de observação dos primeiros formadores de nossa sociedade. Prezando por um naturalismo que pouco afeta o campo espacial – e que reserva à ação das personagens as principais ferramentas, mais do que um conflito formal estabelecido -, o filme mistura o documentário ao lirismo imperado pelo descobrimento de uma criança, elemento à parte em um cenário fraturado por projetos de destruição.

Leve, é uma obra que compreende que, se o peso da realidade já é forte o suficiente, é justo permitir que as vítimas dessa mesma opressão tentem se emancipar pela celebração de si, complementar e tão importante quanto à denúncia.