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“PÉROLA” – Mágico universo de uma mãe, uma piscina e algumas caipirinhas [24 F.Rio]

Peça teatral, livro e agora filme. A trajetória por mídias e expressões artísticas diferentes se completa com a adaptação cinematográfica da obra criada por Mauro Rasi. Dessa vez, no cinema, PÉROLA mantém a comédia de seu material original e a potência de sua protagonista, ao mesmo tempo que utiliza as potencialidades das imagens em movimento para reforçar o humor, o encantamento e a sensibilidade de sua história. Ainda que o drama esteja presente, é o universo praticamente mágico o que mais chama a atenção em uma trama do cotidiano comum.

(© República Pureza Filmes / Divulgação)

A magia gira em torno de Pérola e do olhar de seu filho Mauro. Logo após saber da morte de sua mãe, ele retorna para sua antiga casa, em Bauru. O caminho de volta o faz reviver momentos passados de sua família desde sua infância até sua vida adulta. As reminiscências trazem as manias, ilusões, sonhos, senso de humor, espirituosidade e o desejo de controlar tudo de sua mãe quando se mudam para uma nova residência. Este percurso em direção ao passado é feito com o carinho e o humor proporcionados pela passagem do tempo.

“Pérola morreu e hoje é o primeiro dia após sua morte”. É com essa frase que o filme se inicia enquanto um homem observa o mar. Este rapaz é Mauro, filho que se prepara psicologicamente para voltar à sua cidade natal para o enterro da mãe. O trajeto envolve a irrupção de lembranças sobre a infância, a adolescência, o início da vida adulta e, principalmente, a matriarca da família. As primeiras sequências já estabelecem uma narrativa não linear, marcada pela transição entre o presente dramático da viagem de Mauro e os flashbacks cômicos de diferentes passagens de sua existência. No vaivém entre os tempos, o espectador é apresentado à dinâmica familiar em que o personagem convive mais recorrentemente com sua mãe, com o pai Vado, a irmã Elisa e a tia Norma. Simultaneamente, a não linearidade começa a dar toques mágicos ao universo diegético, pois o resgate do passado segue uma lógica mais livre e emocional do fluxo das memórias e não se limita a demarcar a passagem de tempo de modo convencional.

Os acontecimentos lembrados podem ser conceitualmente comuns ou tristes, mas sempre aparecem de forma leve e espirituosa. Por exemplo, a simples ação de estacionar o carro dentro de casa pode se tornar um grande evento cômico. Momentos infelizes ao longo dos anos recebem a perspectiva inocente de uma criança ou a caracterização pitoresca da família de uma classe média suburbana, como é o que acontece com casos os extraconjugais de uma das tias, o desfecho trágico de um dos tios e um acidente grave com um dos familiares. Outras situações que se repetem por um longo período de tempo também propiciam um ambiente constantemente engraçado em torno da família, dentre elas as dificuldades de finalizar a tão sonhada piscina para Pérola, o desejo frustrado de ampliar as medidas da residência comprando as propriedades do entorno, a previsão frequentemente adiada de ver a morte da avó e a vontade do casal Pérola e Vado de beber caipirinha a todo instante. Como o drama ou a rotina são tratados sempre na chave da comédia, cria-se um universo idealizado que ultrapassa a banalidade e atinge um nível quase mágico.

Da mesma maneira que os eventos da trama sugerem uma ambientação encantadora, a encenação ressalta o mundo particular que parece recobrir aquele trecho do munícipio de Bauru. Este trabalho é feito por Murilo Benício em seu segundo projeto como diretor, que já revela alguns traços recorrentes de sua sensibilidade artística ao escolher fazer mais uma adaptação de um material pré-existente. Em sua estreia, ele adaptou a peça “O beijo no asfalto” de Nelson Rodrigues a partir de um exercício de metalinguagem autoconsciente para a construção de uma narrativa. Em seu segundo trabalho na direção, Murilo Benício constrói piadas e comentários jocosos através de aspectos visuais da decupagem, não precisando apenas do texto para causar esses efeitos no público. Alguns podem ser mais óbvios, como o posicionamento de Pérola no centro da ilustração de uma concha; já outros indicam mais claramente a criatividade do realizador, como a conversa entre o personagem de um programa de TV e um dos familiares que assistia ao programa e a projeção de um diálogo romântico de um filme visto por Mauro para um diálogo banal de seus pais.

Acima de tudo, a magia e o humor que sobressaem na realidade específica da casa em Bauru vem da atuação delicada de Drica Moraes. A atriz trabalha o humor da protagonista sem cair na armadilha de se repetir dentro de uma fórmula confortável: exagera conscientemente no sotaque carregado do interior paulista, traduz de modo simples o humor existente na rotina de uma classe média baixa (os projetos imperfeitos para a casa própria, as discussões na família, os momentos simples de lazer no quintal…), superdimensiona um conflito ou obstáculo a ponto de torná-lo motivo para grandes arroubos de descontentamento e protesto, mantém o otimismo para a realização de seus sonhos e controla o futuro dos filhos a partir da indicação de seus trabalhos e relacionamentos amorosos. Além disso, Drica Moraes revela pontualmente outras nuances da personagem quando observa à distância e carinhosamente Mauro sem precisar falar nada ou quando expõe mais diretamente suas preocupações com a família através das lágrimas derramadas em certos diálogos.

Conforme o vaivém temporal se solidifica na narrativa, o choque entre presente e passado reafirma a sensação de que a moradia de Pérola obedece a regras próprias de um mundo praticamente alheio ao nosso. Os flashbacks são preenchidos por uma série de cores vibrantes nas paredes, janelas e objetos cênicos que se completam e acolhem quem chega naquele ambiente, ao passo que as cenas no presente possuem uma iluminação fria marcada prioritariamente por uma cor azul melancólica. No entanto, a colisão entre os dois tempos também gera descompassos comprometedores para o filme, principalmente o tom das atuações nos dois segmentos. Junto com Drica Moraes, Valentina Bandeira, Rodolfo Vaz e Cláudia Missura contribuem para o humor, sendo, respectivamente, a filha afetada pelo casamento com um homem muito religioso, o marido disposto a agradar a esposa com drinques novos e a tia sempre envolvida em segredos ou em contratempos da família. Já o drama tentado a partir das dores sentidas por Mauro no presente não tem o mesmo alcance sensorial que a comédia, também por conta da participação mediana de Leonardo Fernandes em comparação com o restante do elenco.

Se os componentes dramáticos a princípio se revelam frágeis e menos atrativos, tanto que a entrada das cenas passadas no presente faz os espectadores desejarem que os flashbacks voltem logo por serem mais interessantes. O núcleo do Mauro mais velho, de fato, encontra seu lugar quando encontra seus parentes e sua cidade natal. A partir daí, os últimos minutos de “Pérola” conseguem dosar drama e comédia tendo a protagonista como centro máximo daquelas cenas sem precisar deixar Mauro em uma posição de destaque. Os reencontros podem comover, as lembranças podem desencadear diversos sentimentos e a presença física na casa pode desencadear experiências adormecidas. Ainda assim, a força está na projeção de Pérola, depois de morta, como uma figura especial que transita por sua morada e pelos corações de seus familiares. Então, uma conversa emocionada, a ressignificação de sua imagem e a evocação de sua liberdade marcam o universo mágico de uma mãe que adoraria ficar em sua piscina bebendo caipirinha.

*Filme assistido durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).