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“PINÓQUIO” (2019)* – Realismo aterrorizante

* Produzido em 2019, o filme do qual trata esta crítica chegou aos cinemas brasileiros apenas em 2021. Para não haver confusão com outras versões (em especial a de 1940), optou-se por indicar o ano da produção.

É pouco provável que exista uma pessoa adulta que não conheça, mesmo que superficialmente, a história do boneco que queria virar um menino de verdade. Torna-se questionável, portanto, um novo filme do PINÓQUIO, ainda que em live action e fora do circuito hollywoodiano (a produção é italiana). Qual seria seu público-alvo? O que justifica uma nova versão?

Gepeto é um marceneiro pobre e solitário que, inspirado em um teatro de fantoches que chegou em sua cidade, decide fazer um boneco de madeira. Sonhando em ser pai, ele trata o boneco como um filho, dando a ele o nome de Pinóquio. Seu desejo de dar vida a Pinóquio é atendido, porém a desobediência do menino faz com que ele se perca do pai e enfrente vários perigos para aprender diversas lições.

(© Imagem Filmes / Divulgação)

Baseando-se na obra original de Carlo Collodi, Matteo Garrone (que dirige o longa) e Massimo Ceccherini escrevem um roteiro fiel ao espírito do enredo, sem grandes diferenças em relação ao que é marca daquele universo (o nariz crescendo, as orelhas de burro etc.). Isso significa também que, textualmente falando, “Pinóquio” é bastante infantil, colocando vilões unidimensionais para agitar a trama, de um lado, e aliados do protagonista, de outro. O Grilo Falante é a voz da consciência, tornando ainda mais claros os erros cometidos por Pinóquio em sua trajetória aventuresca. Até mesmo o humor da película é leve (as piadas com o consumo alcoólico de Cerejo, a modificação da velocidade da fala de Caracol…).

No que está explícito, assim, a produção é completamente voltada ao público infantil. Certamente é do interesse dos pais das crianças que elas se encantem com um filme no qual se pregam valores como obediência, verdade e (des)confiança. Para tornar a história atraente aos pequenos, a solução foi não apenas colocar o protagonismo em uma criança, mas fazer com que Pinóquio seja travesso. Como a fase de desenvolvimento do protagonista é a infância, seu comportamento é compatível: não quer deixar o pai sozinho, mas percebe que a diversão é mais sedutora que os estudos – o que rende a ele contratempos que lhe servem de lições. Federico Ielapi, por sinal, é um excelente Pinóquio, em especial pelo trabalho de voz, com entonações bastante enfáticas (o trabalho de maquiagem digital em cima dele é também soberbo).

O paradoxo existente na produção é que a história é infantil ao passo que o visual pode ser assustador em demasia para as crianças. Trata-se de um problema de linguagem: o texto original de Collodi tem enorme potencial assustador, mas a literatura não é vívida o suficiente para assustar de imediato; da mesma forma, um filme em animação não tem o condão de assustar porque as crianças sabem que é apenas um filme (o que identificam justamente em razão da animação). Quando se trata de um live action, a situação não é a mesma, pois sua linguagem é mais próxima do mundo real e concreto que está à volta dos infantes.

Em outras palavras, enquanto a narrativa de “Pinóquio” mantém o tom infantil, a opção pelo live action pode resultar em crianças chorando, com medo dos assaltantes. Essa cena, inclusive, é uma das mais aterrorizantes, já que o cenário é noturno, nebuloso e vazio. Entretanto, a depender da idade, uma criança pode ter medo até mesmo do Atum, sobretudo porque o CGI é surpreendentemente bom (em se tratando de um filme, reitere-se, fora do eixo de Hollywood). Em meio a uma estética deslumbrante – cenários bucólicos belíssimos; fotografia principalmente em tons amadeirados, o que vai se atenuando com o desenvolvimento da trama, que ganha alguma variação de cor; o realce da cor vermelha da roupa de Pinóquio; maquiagem e figurinos espetaculares (destacando-se os seres animalescos de corpo humano, como caracol e raposa) -, o que já foi visto em trabalho anterior de Garrone (“O conto dos contos“), é possível questionar quem é o público-alvo do longa.

Possivelmente, a fama do clássico e um nome famoso como Roberto Benigni no papel de Gepeto (em versão mais enérgica e engraçada que na maioria) podem fazer com que o público adulto se interesse por “Pinóquio”. Sem crianças, contudo, o filme se torna desinteressante, talvez sonolento. Por outro lado, o que pode ser feito se as crianças começarem a chorar com bonecos realistas aterrorizantes? Mais recomendável que se assista à versão de 1940.