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“POBRES CRIATURAS” [2] – A autonomia feminina, no sexo e no que mais se desejar

Embora a premissa de POBRES CRIATURAS siga a esteira de Frankenstein, o caminho percorrido pelo filme não se restringe ao binômio criador-criatura. Ainda que coloque uma figura feminina no centro de acontecimentos ruins para alguns homens, como em inúmeras histórias antigas, certamente não é esse o olhar do filme sobre as mulheres. Essas duas ideias clássicas, subvertidas, são algumas das transgressões presentes no longa.

O filme conta a história de Bella, uma jovem de passado misterioso que é trazida de volta à vida por um cientista cujos métodos não são bem vistos na comunidade. Quando Max vai trabalhar para o cientista, ele conhece Bella, por quem se apaixona independentemente das peculiaridades da moça. Contudo, ele não é o único a se apaixonar por ela.

(© Searchlight Pictures / Divulgação)

Dificilmente o livro de Alasdair Gray, adaptado no roteiro de Tony McNamara, encontraria um diretor mais adequado que Yorgos Lanthimos para sua versão cinematográfica. Essa afirmação é possível não apenas porque as escolhas estilísticas do cineasta grego – uso intenso de lente grande-angular, pouca profundidade de campo, enquadramentos inusitados etc. -, mas por sua predileção pela estranheza. Os excessos de Lanthimos não surpreendem, assim como as inúmeras esquisitices imagéticas (híbridos animais, a bolha que sai da boca) e sonoras (a trilha instrumental, o ruído do borbulhar da máquina conectada ao cientista). É desse material-base, inclusive, que é extraído um humor único, que vai de comportamentos (Bella ao manipular o cadáver), falas (a “fuga secreta”) e implicitudes (a cena na mesa com Kitty).

Esteticamente, trata-se de uma obra única. No design de produção, não fica claro o período em que a história se passa simplesmente porque não se passa em um período passível de definição – razão pela qual o visual é retrofuturista, unindo, por exemplo, carruagens (ao invés de automóveis) a carros voadores, e óculos de sol futuristas a bordados antigos. Alguns cenários usam matte paintings aparentemente falsos (o céu rosa e o mar azul, as paredes do estabelecimento parisiense), seja em razão do exagero, seja por parecerem frágeis demais, o que os torna graficamente teatrais, combinando, assim, com o conteúdo do filme. Na fotografia, o preto e branco inicial é coerente com o mundo comum em que a protagonista habita, de modo que a coloração que surge a partir do segundo ato (e em flashbacks) é representação simbólica de como sua vida ganhou cores. Prevalecem o azul e o amarelo, sempre, contudo, com muito exagero.

Em geral, não há sutilezas. O criador de Bella é God (Deus, em inglês), interpretado magistralmente por Willem Dafoe. Para além da obviedade do nome, seu rosto é marcado por cicatrizes como metáfora das lesões que sofreu na vida. O nome da protagonista também é simbólico, como referência à beleza hipnótica pela qual ela conquista Max (Ramy Youssef) e Duncan (Mark Ruffalo). À distância, Bella pode parecer uma nova encarnação da associação das mulheres ao pecado, como na Bíblia (Eva, a Salomé do Velho Testamento, Maria Madalena), na mitologia grega (Pandora, Helena de Troia) e em mitologias variadas (Morgana nas lendas arthurianas, as sereias etc.). Contudo, ainda que a protagonista seja sedutora como algumas dessas mulheres, e mesmo que eles possam associá-la a algum mal, o que ela verdadeiramente simboliza é a descoberta da liberdade, sobretudo sexual.

O roteiro tem um desvio temático mal trabalhado, em que assuntos como desigualdade socioeconômica e (des)esperança sobre a humanidade são tratados de maneira superficial. Da mesma forma, o desfecho é apressado em demasia quando surge uma nova personagem, completamente unidimensional e sem um propósito maior naquele momento da trama. Entretanto, o tema principal do longa é abordado de maneira sublime, em parte graças à atuação soberba de Emma Stone. A atriz traduz uma naturalidade assombrosa com que Bella progride, começando com palavras incompletas e ausência de conjugação e pronomes, encapsuladas em sua mandíbula solta, e evoluindo para um palavreado rebuscado cuja firmeza da dicção condiz com o conteúdo, igualmente firme, de alguém que sabe o que deseja e que passa a ter ideias próprias a partir de vivências e leituras.

A liberdade que Bella explora tem ênfase na conotação sexual. Lanthimos não tem receio de chocar o espectador com o gore e a nudez explícita, ambos repetidos diversas vezes. A ideia é revelar que Bella, pela experimentação (a alusão a Eva com o uso da fruta na mesa, ou a Salomé, neta de Herodes, na cena da dança), descobre o prazer – principalmente voluptuoso – e a liberdade de pensar, ser e fazer o que quiser. Rapidamente, ela aprende que há um aparato social por força do qual se exige uma polidez que censura – castra – as mulheres. Ou sua independência é instrumentalizada para o prazer masculino, ou elas não têm direito aos prazeres carnais. A ingenuidade inicial de Bella é cômica por encarar espontaneamente a sexualidade, o que se torna, porém, uma rebeldia não aceita pela sociedade. Se ela é curiosa e aventureira no início, a vontade própria e o pensamento autônomo se tornam incômodos para a sociedade e muitos dos homens que a rodeiam (alguns deles querem até mesmo enclausurá-la). É tarde demais, pois ela já tem consciência da diferença entre o papel social que dela é esperado e seus reais desejos, sejam eles lascivos ou não. Mesmo se ela for tomada pela luxúria, qual a importância para a sociedade!?