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“POBRES CRIATURAS” – Adaptação espiritual de “Frankenstein” [25 F. RIO]

Era uma noite chuvosa de 16 de junho de 1816 na Suíça. Três poetas ingleses estavam confinados em uma casa por causa de uma tempestade. Um deles propõe um passatempo: cada um deveria escrever uma história de fantasmas. Todos escrevem. Um dos contos criados foi sobre um jovem estudante dando vida a ossos recolhidos de uma sepultura. Anos depois, o conto se transformou em um romance sobre uma criatura feita a partir de cadáveres que, após ser abandonada por seu criador, compreende sua triste condição e se revolta. Esta é a origem de “Frankenstein” escrito por Mary Shelley. No cinema, esta história já foi adaptada diversas vezes. Em 2023, uma livre adaptação é realizada em POBRES CRIATURAS, pensando a fusão de fragmentos díspares para um exercício artístico sobre a liberdade feminina.

(© Walt Disney Studios/ Divulgação)

Baseado no livro homônimo de Alasdair Grey, o filme acompanha Bella Baxter, trazida de volta à vida pelo excêntrico cientista Godwin Baxter na Era Vitoriana. Apesar de ser um doutor brilhante, ele tem métodos nada ortodoxos e faz a jovem ressurgir substituindo o cérebro dela pelo do filho que não nasceu. Com o passar do tempo, ela se desenvolve em termos físicos e intelectuais e tem grande desejo de conhecer mais do mundo. Então, foge com o advogado Duncan Wedderburn e viaja pelos países sem quaisquer amarras ou preconceitos exigindo maior igualdade.

Na obra literária, Mary Shelley cria um clássico do terror e debate a questão da dualidade entre humanidade e monstruosidade. A criatura feita por Victor Frankenstein é abandonada sozinha no mundo e conhece a solidão, o preconceito, a violência e o ódio. Yorgos Lanthimos se inspira no romance para encenar a trajetória de Bella Baxter, ela própria representada como uma criatura forjada por um cientista maluco. Então, a protagonista passa por um arco em que conhece a realidade ao seu redor e gera estranhamento no público por se tratar de um ser com corpo de mulher adulta e uma mentalidade infantil em formação. Nesse ponto, a atuação de Emma Stone dá os primeiros sinais da complexidade de seu trabalho por explorar situações insólitas, como desenvolver a linguagem, aprender os atos aceitáveis ou não da vida em sociedade e descobrir a sexualidade. O diretor confere sua própria sensibilidade a esse primeiro ato através de um humor bizarro que segue as descoberta da personagem em um ambiente absolutamente incomum.

As descobertas feitas por ela levam a narrativa para dimensões ainda mais interessantes. Na virada para o segundo ato, as viagens pelo mundo ao lado de Duncan é o gatilho para o filme discutir o desejo pela experimentação de Bella. Ao passar por Lisboa, Alexandria e Paris, ela vivencia situações em que podemos perceber sua curiosidade pelo que é novo e desconhecido, seu interesse pelo prazer de uma aventura e sua vontade de melhorar a si e o mundo. A partir daí, Yorgos Lanthimos faz um retrato multifacetado do protagonismo feminino e novamente Emma Stone brilha ao dar novas nuances à protagonista. Bella é livre e bem resolvida em relação à satisfação de seus desejos sexuais, independente das influências tentadas por Duncan sobre ela, fascinada pela possibilidade de obter mais conhecimento a partir da leitura e de debates filosóficos e de comportamento assertivo para administrar sua própria vida, inclusive tratando a prostituição como um negócio. Em contrapartida, a descoberta da realidade fora de sua casa também promove encontros desagradáveis que a fazem identificar as mazelas e as contradições da humanidade, como a miséria e a exploração de grupos desfavorecidos.

O percurso dramático de Bella igualmente contempla o enfrentamento da masculinidade hegemônica e opressiva característica daquele tempo mas também evocativa do nosso presente. Ao redor dela, os personagens masculinos tentam exercer algum tipo de controle e fracassam. Godwin é vivido por Willem Dafoe como o cientista excêntrico que se aproxima de Victor Frankenstein, ele mesmo também uma figura “monstruosa” por conta dos efeitos no seu corpo das experiências feitas pelo pai, que tem a ilusão de poder proteger a “filha” dentro de uma redoma na casa (tal qual um deus como aparece em seu apelido God). Max McCandles é interpretado por Ramy Youssef como um sujeito aparentemente solidário e compreensivo com as necessidades de Bella, mas ele também tenta delimitar o que ela pode ou não fazer através da norma social do casamento. E Duncan é trabalhado por Mark Ruffalo como uma figura inicialmente sedutora que logo revela sua personalidade patética de culpar a mulher por seus próprios defeitos, vulnerabilidades e incapacidade de moldá-la à suas vontades. Novamente, o cineasta utiliza a comédia de estilo bizarro para caracterizar esses homens como “monstros” por tentarem restringir a liberdade das mulheres.

Lanthimos incorpora a ideia de “monstruosidade” na sua estética particular. Em “Dente canino“, “O lagosta” e “O sacrifício do cervo sagrado“, a linguagem está relativamente mais comedida para que a dramaturgia provocativa e excêntrica esteja no centro de sua execução. Desde “A favorita“, o cineasta tem hiperestilizado suas escolhas formais de tal maneira que um universo estético muito próprio passa a ser reconhecido e potencializado. Os ângulos inusitados de câmera que enquadram os personagens de baixo para cima, registram detalhes pouco usuais de um cenário e constroem um quadro instável sem uma composição visual tão agradável. A utilização de lentes grande angulares (também chamadas de “olho de peixe”) faz a fotografia afetar e distorcer as imagens por conta da remodelação do foco e da inclusão de mais traços do cenário. Tais recursos criam a sensação, por exemplo, de que a casa e o laboratório de Godwin seriam aquários ou mesmo qualquer outro ambiente fragmentado e estranho à percepção humana. Um efeito que também passa a ideia de espaços “monstruosos” integrados por partes que não combinam entre si.

Ao longo da aventura desbravadora de Bella, outros fragmentos estéticos aparentemente antagônicos se encontram para dar origem a uma unidade singular para uma história fantasiosa. A trilha sonora se baseia em acordes ritmados e padronizados para descrever as diferentes sensações experimentadas a cada nova descoberta ou confronto vivido pela protagonista. A percepção de um mundo miserável e explorado é acompanhada por notas dramáticas, os embates entre Bella e Duncan recebem um tom de suspense e a exposição das facetas patéticas dos personagens masculinos é envolvida por acordes cômicos. Em paralelo a isso, a cenografia abraça um tom de artificialidade semelhante ao que também foi feito em “Barbie“. O navio no qual a personagem principal e o advogado viajam pela Europa, a rápida parada em Alexandria e a passagem por Lisboa são exemplos de locações altamente estilizadas nas cores, formas e as texturas através do trabalho na pós-produção. Ao invés de dar uma estética realista, Yorgos Lanthimos constrói uma abordagem típica de um conto de fadas sombrio moldado pela ideia de que a unidade estilística pode reunir características bem diversas.

Se analisarmos ainda mais os ecos do romance “Frankenstein” em “Pobres criaturas“, podemos discernir os paralelos entre Bella e Mary Shelley. Tal qual a protagonista do filme, a escritora também passou por tragédias pessoais e foi afetada pelo machismo de seu tempo a ponto de ficar bastante tempo impedida de ter seu nome associado ao livro. Estas aproximações enriquecem a obra cinematográfica e permitem à narrativa diversificar seus sentidos temáticos, dramáticos e estéticos em torno da questão de uma espécie de “monstro” formado pela conjugação de elementos distintos. Nem sempre a utilização simbólica da noção de monstruosidade remete a possibilidades positivas de criação artística, já que, muitas vezes ao longo da história, a liberdade feminina é encarada como uma atitude monstruosa. Em tom crítico a essa visão, Bella Baxter e Emma Stone dispensam a associação a um monstro e atacam a verdadeira natureza monstruosa que pode haver na humanidade com humor ácido, experimentação criativa e protagonismo poderoso sobre si mesma.

*Filme assistido durante a cobertura da 25ª edição do Festival do Rio (25th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).