“RAYA E O ÚLTIMO DRAGÃO” – Convergência de narrativas
Desde que a Disney atualizou a fórmula das animações e dos contos de fadas, obras mais sofisticadas foram produzidas sem perder de vista o alcance das mensagens sociais e sentimentais. Foi assim, por exemplo, que maniqueísmos fáceis foram dispensados e o protagonismo feminino ganhou maior relevância em títulos como “Moana“, “Frozen” e “Valente“. Na mesma linha, o serviço de streaming Disney+lança RAYA E O ÚLTIMO DRAGÃO, que continua repensando as estruturas clássicas das histórias da empresa e ainda integra mitologias específicas a discussões sociopolíticas bastante reais.
Kumandra é o local onde uma trama de fantasia, ação e distopia se desenrola, o reino é habitado por uma antiga civilização, que conviveu com dragões venerando seus poderes e sabedoria. Porém, a chegada de uma força obscura chamada Drunn começa a devastar tudo que vê pela frente, transforma os humanos e os dragões em pedra e alimenta a discórdia na população. Esse mundo, então, parece fadado ao fim sem seus animais protetores, exceto para Raya, uma guerreira que sai em busca do último representante daquela espécie para salvar seu universo.
Como ocorre em diversos filmes fantásticos, a narrativa se inicia com a apresentação de sua mitologia própria. Nesse caso, trata-se da combinação entre a cultura do Sudeste Asiático, com sua crença em divindades ancestrais específicas invocadas por dragões e seus significados, e a magia típica de histórias de fantasia exemplificada pela joia dos dragões que repele os espectros destruidores. A sequência de abertura consegue equilibrar as duas dimensões enquanto contextualiza as situações de equilíbrio e perturbação daquele mundo: a convivência fantasiosa entre as espécies animais possibilita uma existência pacífica cheia de vitalidade, já a aparição de uma ameaça poderosa desencadeia brigas, egoísmos, ambições e a desestruturação caótica da vida em comunidade. Entretanto, o início dos conflitos entre as personagens humanas sofre com alguns problemas oriundas de certas facilitações dramáticas.
Os problemas têm relação direta com a forma como a produção aborda a necessidade e os obstáculos de se confiar em outras pessoas, sejam desconhecidas, sejam aparentemente traiçoeiras. Por mais que a Disney trabalhe com mensagens edificantes que alcançam públicos de faixas etárias variadas, a lição da vez esbarra em uma simplificação que leva tempo até ser superada: com o desaparecimento dos dragões, Kumandra se fragmentou em territórios hostis uns aos outros (exceto por aquele comandado pelo pai de Raya), que são nomeados de acordo com partes do corpo desses animais de modo muito esquemático, afinal Coração é a área mais bondosa e diplomática enquanto Presa é aquela mais ardilosa e traidora. Além disso, o primeiro ato depende muito de diálogos expositivos que deixem muito evidente que a a maior ameaça é a falta de união dos humanos, algo que prejudica, inicialmente, a protagonista.
Leia-se inicialmente porque o desenvolvimento da aventura encontra caminhos mais complexos para lidar com sua dramaturgia. Isso se relaciona com o fato de os diretores Don Hall e Carlos López Estrada se apropriarem da mitologia fantástica e da mensagem otimista sobre confiança para remodelar as narrativas usuais da Disney. Ao invés do musical e da comédia prevalecerem, a trama abraça com intensidade a ação e a distopia, criando missões explícitas para a jornada da jovem (reunir as peças quebradas da joia dos dragões) em um universo próximo de um apocalipse. E, principalmente, a protagonista possui a agência que as mais recentes personagens da Disney apresentam, conciliando carisma da dublagem de Kelly Marie Tran à representatividade de uma mulher estar no centro e na liderança da aventura (como em “Mulan“) – há ainda a influência decisiva de Sisu, dragoa que participa diretamente das sequências, mas também estimula outras camadas dramáticas em Raya, que passem pelo questionamento de suas desconfianças sobre os “inimigos humanos”.
A partir do momento em que a animação se sustenta em um equilíbrio sólido entre fantasia, mensagem integradora e modificações na dramaturgia clássica, o universo diegético também se beneficia. Cada aspecto distópico daquela civilização instável recebe atenção especial pelos efeitos visuais, que delimitam identidades estéticas particulares para cada região (por exemplo, o mercado flutuante de Garra, o deserto de Cauda e a região montanhosa coberta de neve de Espinha) e consequências próprias após as ações dos Drunn. É igualmente curioso perceber um subtexto de preservação ambiental na narrativa, já que as águas dos rios oferecem proteção contra os Drunn (por isso, a construção de um canal em torno de Presa) e os poderes dos dragões remetem a elementos da natureza, como a chuva, névoa e a habilidade de Sisu de ser uma ótima nadadora.
Embora elementos tradicionais da fórmula Disney estejam ainda presentes, os diretores sabem como subverter a expectativa e integrá-los ao tom geral da narrativa. É o caso do recurso de inserir vários coadjuvantes como alívios cômicos, o que a princípio podem sugerir as presenças da bebê Noi com seus três macacos, o menino Boun e o guerreiro Tong. Porém, esse papel cabe muito mais ao tatu Tuk Tuk, que acompanha a protagonista, pois o humor é bem dosado na aventura e os humanos também têm seus próprios objetivos de salvar pessoas queridas. Acima de tudo, Namaari é quem mais agrega para os conflitos dramáticos, sendo a suposta antagonista, um símbolo das intrigas políticas entre os povos, o reflexo parcial de uma faceta de Raya e uma personagem multifacetada marcada por suas próprias angústias internas – na evolução dramática de Namaari é muito revelador e paradigmático observar como ela e outras duas figuras femininas (Raya e Sisu) estão no clímax.
“Raya e o último dragão” pode nem sempre se precaver contra oscilações na maneira de trabalhar o salto de fé que é depositar a confiança em alguém – as primeiras cenas em que alguma personagem demonstra confiar em outra parece inverossímil -, mas sua mensagem ganha força com o tempo. Especialmente, porque há dois momentos em que o gesto de se entregar ao outro em um ato de confiança revela sentimento genuíno e poder narrativo: o esforço de salvar pessoas inocente e um sacrifício final repleto de fé no outro. Assim, o clímax e o epílogo remetem novamente ao discurso de comunhão, à criatividade da fantasia e da mitologia imaginativa, à subversão da fórmula Disney e à importância social de um elenco focado em personagens femininas e de uma história direcionada para o Oriente.
Um resultado de todos os filmes que já viu.