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“REGRA 34” – Decolonizar corpos, desejos e olhares [24 F.Rio]

Decolonizar é o processo histórico de transgressão das influências coloniais em sociedades fundadas no patriarcalismo, na escravidão e na heteronormatividade. A decolonialidade é uma proposta de ação no mundo e de pensamento analítico que desafia e rompe continuamente com as estruturas de poder de origem colonial, em especial na América Latina. Esta ideia pode ser uma chave de assimilação para REGRA 34, filme que escancara e questiona preconceitos, repressões e padrões sociais na forma de pensar imagens, práticas e saberes em torno da vida de sua protagonista.

(© Imovision / Divulgação)

Simone é uma jovem de 23 anos que estuda Direito penal e se dedica à defesa dos direitos das mulheres. À noite, ela faz apresentações eróticas em frente a webcam para ser assistida por vários usuários conectados a uma plataforma específica. A rotina dela envolve circular por dois universos distintos, conviver com os amigos Coyote e Lucia e conversar à distância com outra Marina. Em certo dia, Simone se depara com um vídeo provocativo que a faz despertar o interesse por práticas sadomasoquistas. Mesmo alertada por Marina sobre a necessidade de seguir algumas regras, começa a experimentar seus impulsos mais ousados.

A ousadia das imagens pode ser o primeiro efeito sentido pelo público, deixando-os desconcertados já na sequência inicial. A protagonista surge em cena fazendo uma de suas apresentações eróticas na internet com absoluto domínio consciente de seu corpo e dos prazeres físicos. A decolonização proposta começa na forma como a diretora Júlia Murat filma Sol Miranda sem objetificá-la, mas enfatizando a liberdade comportamental da personagem. Além disso, a própria atriz não se enquadra nos padrões rígidos de beleza que impuseram socialmente a magreza como referência e enfrenta o preconceito racial contra a mulher negra. Sem dúvida, a atuação de Sol Miranda tem uma força que impregna a tela nos momentos em que se apresenta em frente ao computador, posiciona-se nos debates nas aulas nas universidades ou transmite certo mistério em expressões faciais enigmáticas antes de tomar atitudes mais contudentes.

Outro núcleo que faz parte da vida de Simone é aquele no qual estuda Direito penal e discute com professores e colgas de turma sobre os alcances, as limitações e as contradições da justiça. Em muitas sequências, a ruptura com uma perspectiva colonizada se manifesta nas discussões que contextualizam as leis dentro de uma sociedade desigual e preconceituosa. Os temas que vêm à tona são a seletividade problemática da justiça, as consequências de um Estado punitivista, o avanço de atitudes intolerantes e autoritárias no país e a violência crescente contra as mulheres. A decolonialidade se apresenta nas reflexões feitas durante as aulas ou nos trabalhos de assistência às mulheres violentadas, sempre buscando um ponto de vista não hegemônico para as questões sociais contemporâneas. Ocasionalmente, a encenação e alguns diálogos parecem pouco orgânicos e saídos de um discurso panfletário, mas a necessidade de expor diretamente o conteúdo desse segmento dificulta a criação de outra dinâmica.

Romper visões e condutas socialmente cristalizadas é uma operação também realizada em uma escala minimalista nos momentos mais comuns ou discretos. A narrativa trata com naturalidade a nudez e não somente do corpo feminino, tradicionalmente mais exibida pelo cinema, pois o órgão íntimo masculino também é registado pela câmera – assim, o filme não considera a nudez frontal masculina um tabu ou um elemento controverso a ser evitado. A espontaneidade continua presente, por exemplo, nas sequências em que Simone e os amigos avaliam alguns pênis na internet, em que Coyote relata sua primeira experiência amorosa com outro homem e em que Lucia, Simone e Coyote fazem relações sexuais sem se preocupar com qualquer padrão social de relacionamento. Os questionamentos chegam a atingir outras questões próprias de uma sociedade patriarcal, como os papéis sociais de homens e mulheres, nas cenas que discretamente criticam a atribuição de tarefas domésticas apenas às mulheres ao trazer Coyote lavando louça e fazendo comida enquanto Simone se ocupa de outro trabalho.

É interessante perceber como construções estilísticas sutis igualmente contribuem para o princípio geral de decolonização do mundo diegético. A princípio, podem parecer cenas ou recursos incoerentes ou despropositados por não gerarem efeitos imediatos na trama. A partir de uma observação mais cuidadosa, é possível identificar uma carga simbólica mais forte em escolhas formais condizentes com o tom da narrativa. Em passagens que costuram o universo da faculdade e o universo das performances sensuais, Júlia Murat filma cenários da Zona Norte ou do centro do Rio de Janeiro dando a impressão de que sua câmera quer decolonizar os espaços ao evitar os cartões portais da cidade e dar maior enfoque em áreas menos privilegiadas pelo cinema (em certo instante, o Maracanã aparece, porém colocado no canto direito do quadro sem tanto destaque). Mais à frente, a protagonista recebe a amiga paulista em sua casa e, enquanto descansam e se alimentam, ouvem a canção “Baba” de Kelly Key, inserida de modo a comentar o empoderamento das duas mulheres.

Acima de tudo, é a dimensão sexual da obra a que mais chama a atenção. Em primeiro lugar, porque não faz concessões em mostrar Simone durante suas transmissões ao vivo, em segundo lugar, porque a montagem desperta a curiosidade de compreender as articulações entre as várias atividades da protagonista. Posteriormente, o aspecto mais intrigante é a entrada da mulher nas práticas BDSM de disciplina, dominação, submissão e sadomasoquismo que propõe uma relação inusitada entre prazer e dor. Sozinha ou acompanhada por Coyote, Simone explora os limites de seu corpo e outras possibilidades de excitação com técnicas de enforcamento ou com o uso de objetos cortantes. Essa guinada da história não contém explicações didáticas que justifiquem as decisões da personagem, o que fica evidente na dinâmica de mistério que se instaura, por exemplo, na tensa sequência em que Simone e Coyte fazem sexo usando facas e vidro quebrado.

Mesmo que o maior interesse de Júlia Murat seja propor questionamentos provocativos sem oferecer respostas taxativas, existem algumas pistas que ajudam a pensar leituras possíveis do arco narrativo de Simone. Se ela, desde o princípio, se coloca como uma mulher que subverte padrões impostos, repressões sexuais e visões pré-concebidas, faria sentido impulsionar ainda mais esta postura transgressora em direção a outras formas de prazer e de performances eróticas. No entanto, desafiar moralismos e conservadorismos tão enraizados na sociedade pode impor dificuldades e perigos, algo evidenciado na mise-en-scène de suspense construída em torno de um encontro entre a protagonista e um homem misterioso e a dúvida entre atender ou não a porta na última cena. Ainda que as reviravoltas na trajetória da personagem e o desfecho possam ficar em aberto, torna-se evidente o quanto Júlia Murat reconhece a ousadia de enfrentar tradições conservadoras nas formas de pensar corpos, desejos e olhares através de escolhas estilísticas decoloniais.

*Filme assistido durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).