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“REMÉDIO AMARGO” – Um passatempo agridoce

A evolução do Cinema é marcada tanto por continuidades de técnicas e modelos quanto por rupturas e inovações. Há quem argumente, aliás, que a criatividade é um processo composto, em sua maior parte, pela reorganização de elementos já existentes. Esse rearranjo, no entanto, deve ter uma identidade própria. REMÉDIO AMARGO (“El practicante”, no original) é uma reorganização de ingredientes conhecidos em uma narrativa pouco surpreendente.

(© Netflix / Divulgação)

Ángel é um paramédico que vive um relacionamento abusivo com a namorada Vane. O casal está tentando ter um filho, mas encontra dificuldades. Um acidente torna Ángel paraplégico. Apesar de receber ajuda de Vane, Ángel se torna ainda mais controlador e agressivo. Quando o relacionamento termina, ele cria um plano para tê-la novamente por perto – mesmo que ela não queira.

O filme pode ser caracterizado como suspense desde suas primeiras cenas. As dúvidas sobre o comportamento dos personagens sempre estão presentes, já a fronteira entre a sugestão da violência física e sua efetivação é rompida rapidamente. Com isso, o novo longa da Netflix avança em um nível crescente de agressividade, aderindo a uma narrativa linear, cuja dinâmica apoia-se unicamente na variação entre drama e suspense. 

No roteiro, o principal aspecto positivo é a apresentação do protagonista. Passo a passo, são mostrados diferentes comportamentos que ajudam o público a criar uma identidade para Ángel. As primeiras cenas mostram seu trabalho como paramédico e os furtos que pratica quando tem acesso aos pertences dos pacientes. Também é apresentado seu relacionamento com Vane e o desejo do casal ter um filho. Esse primeiro ato é didático para apreciadores de cinema. Vários elementos da composição do personagem são mostrados até que surge o plot para o segundo ato. 

O diretor Carles Torras fez um bom trabalho ao criar e manter a atmosfera de suspeita sobre seu protagonista. Desde a primeira a aparição do personagem, é possível perceber sua insatisfação e suas reações agressivas. Com essa tensão, somos convidados a ver os acontecimentos sob a ótica de Ángel – o que é reforçado pela falta de desenvolvimento da coadjuvante. Assim, a interação do casal está sempre cercada por desconfianças e pela possibilidade de traição, o que ajuda, também, a identificar a insegurança de Ángel. 

As dificuldades de convivência do casal aparecem na primeira parte do filme. De um lado, Ángel: desconfiado, agressivo, inseguro. De outro lado, Vane: calada e pressionada entre o desejo de ter o filho e a possessividade do parceiro. O acidente que resulta na paraplegia de Ángel tensiona ainda mais a convivência entre eles. Assim, quando entra em seu segundo ato, “Remédio Amargo” traz bons elementos de drama, que são bem combinados com o suspense proposto. 

Outro aspecto positivo do filme é o bom uso de cenários e figurinos simples. A maior parte da trama é desenvolvida no interior de um apartamento que parece situado na década de 90. Apesar de serem utilizados smartphones, laptops e um software espião, muitos itens do cenário são antigos, como as mobílias, um aparelho toca-discos e um para fitas VHS. A mistura de elementos de diferentes épocas distancia os personagens do cenário, indicando a falta de pertencimento como mais uma das tensões no local.  

Cenários e narrativa simples abrem espaço para as interpretações. Mario Casas faz um excelente trabalho como Ángel. Poucos minutos são necessários para que ele provoque aversão, mas, ainda assim, ao expressar a dor física de forma tão convincente, eleva a complexidade de seu personagem. Em suas falas, mantém o tom agressivo e, gradualmente, parece perder o senso de realidade – ainda que se mantenha no limiar entre escolha e obsessão. 

Déborah François, como Vane, tem pouco espaço para trabalhar. A coadjuvante está limitada a responder aos comportamentos de Ángel, com pouca construção de suas características individuais. Vane apenas entra no clima já proposto pelo protagonista, o que reduz a confiabilidade do desfecho do longa. Ainda assim, Déborah adicionou boas nuances ao texto de sua personagem. 

A fotografia de “Remédio Amargo” é bem executada. No pequeno apartamento, os ângulos escolhidos e a pouca movimentação ajudam a gerar uma sensação claustrofóbica. O aprisionamento do cenário é intensificado por uma boa montagem, que evita a utilização de diálogos expositivos para contar a estória.

Enquanto os aspectos visuais são funcionais e enriquecem o longa, a trilha sonora dificulta a experiência em muitos momentos. O ajuste entre ambientação e trilha sonora não é preciso, com músicas que parecem ser utilizadas para sustentarem sozinhas a tensão da cena. 

Ao seguir a receita de muitos antecessores, “Remédio Amargo” traz pouco de sua própria identidade. Porém, quando constrói passagens menos conhecidas, cria um desfecho que não se sustenta no próprio roteiro. Se o filme mantivesse o detalhamento do primeiro ato, seria uma receita inspirada em clássicos, com bom apelo sensorial. Como não o fez, funciona apenas como um passatempo previsível de sabor agridoce.