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“RENFIELD – DANDO O SANGUE PELO CHEFE” – Visual e humor regado a gore

Nem todo monstro é horripilante para ser caracterizado enquanto tal. O que o qualifica é o fato de executar monstruosidades, isto é, aqueles atos que fomentam desprezo ou asco do ponto de vista social. Essa noção moral é abordada de maneira não moralista em RENFIELD – DANDO O SANGUE PELO CHEFE, mas poderia ser muito melhor trabalhada.

Depois de um ataque que quase exterminou o Conde Drácula, Renfield, seu servo, precisa entregar-lhe preciosas vidas humanas para que ele possa readquirir suas forças. O problema é que o ajudante não está disposto a sacrificar pessoas inocentes como o chefe deseja, ansiando sair da sua sombra. Para isso, frases motivacionais não bastarão.

(©️ UNIVERSAL / Divulgação)

O filme é uma mescla entre reboot e continuação (para alguns, soft reboot) em relação a “Drácula”, de 1931. Por um lado, existe um elo de continuidade explícito, concernente às cenas do clássico que foram refilmadas com extrema fidelidade (salvo, é claro, pela mudança da dupla principal do elenco). Por outro, há um rompimento em relação ao predecessor em relação a detalhes como a transformação (de um para vários morcegos) e as unhas e a dentição do vampiro. É fácil, de todo modo, encarar “Renfield” como uma continuação que independe do primeiro, uma vez que o backstory é retomado. Nesse caso, porém, há um problema narrativo, tendo em vista que os roteiristas Ryan Ridley e Robert Kirkman são expositivos em demasia no voice over do protagonista, e também de ritmo, pois o diretor Chris McKay imprime um frenesi desnecessário para a contextualização.

É preciso reconhecer, ainda assim, a habilidade de McKay na composição de quadros autônomos – e “autonomia” é uma palavra importante nesta obra, que segue a esteira do original sem deixar de ter personalidade própria. Evidentemente, já havia a base estética do clássico, contudo a época distinta deve ter consequências. A escolha pela cor verde para criar a atmosfera de terror na fotografia se mostra acertada e, ainda, coesa com o design de produção. O covil do Drácula repete as teias de aranha e as velas, sendo possível agora mostrar melhor os mosquitos e a escatologia dos corpos mortos. Com inteligência, o “covil” dos malfeitores contemporâneos (os criminosos) é um esboço de pompa que, todavia, não perde a impessoalidade e o tom sombrio. Na mise en scène, as lutas seguem um padrão claro que une golpes impactantes, música agitada, slow motion e altíssimas doses de gore. A fórmula funciona, culminando no sadismo assumido do final.

Também na caracterização da dupla principal o filme revela grande esmero. A maquiagem de Renfield é mais simples (limitada à palidez), enquanto que a de Drácula revela dificuldade em razão da necessidade de transmitir a evolução do seu quadro (ele está recuperando as forças). Se as unhas e os dentes são modificados, o figurino de Drácula é essencialmente mantido (cartola, bengala, capa etc.), bem como o seu penteado. No caso de Renfield, quando ele toma coragem para ter sua autonomia, essa transformação ganha contornos imagéticos impulsionados por uma empolgante sequência elíptica (novo penteado, novo figurino, música alegre e split screen).

A versão de Renfield de Nicholas Hoult é bem mais carismática (e sã, em termos de consciência) que a do original, fazendo do sensível herói – o conceito de herói é levemente questionado pelo texto – alguém ingênuo (acredita quando Drácula afirma ser seu único amigo) e carente (o que o leva às reuniões do grupo). Hoult não está mal no papel, mas repete uma personagem que viveu inúmeras vezes, do esquisito simpático (muito similar àquelas de “X-Men”, “Mad Max: estrada da fúria” e mesmo “O menu”), aqui com um par romântico que ficaria melhor se limitado à esfera da amizade. Aliás, é uma pena que Awkwafina fique restrita a um papel mais sério, ainda que “Renfield” tenha bons momentos de humor, tanto instantâneo (Drácula praticamente em cinzas, a surpresa do protagonista com o tamanho do assassino) quanto construído (as piadas com ska, os alvos prioritários encontrados no bar). Nicolas Cage acerta, no papel de Drácula, ao assemelhar sua interpretação à do clássico, sem propriamente imitá-la (seria um erro tentar imitar Bela Lugosi), porém o aumento de sua integração à trama, apesar de lhe dar autonomia, despe a personagem da mítica aura fria de outrora. É equivocada, ainda, a motivação do vilão: a inicial, de se recuperar, faz sentido; a segunda, contudo, além de clichê, é absolutamente vazia.

A produção falha um pouco ao se debruçar sobre o seu tema principal, os relacionamentos tóxicos. Isso porque as frases motivacionais são motivo de piada sempre, como se o assunto não merecesse seriedade alguma. É sagaz a vitimização do chefe perante o servo, porém o filme é incapaz de estimular alguma reflexão sobre os monstros dos relacionamentos. Se, por exemplo, o relacionamento de Caitlyn não fosse motivo de piada o tempo todo, haveria substância por trás do mix de visual e humor regado a gore.