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“RETRATOS FANTASMAS” – O tempo de espaços que atravessam a intimidade e o cinema

Existem obras que trabalham a metalinguagem acompanhando os bastidores da realização de um filme, como “Cantando na chuva“. Em outros casos, alguns projetos propõe teorias sobre o próprio cinema, como “Janela Indiscreta“. Ainda há produções que retratam os laços emocionais proporcionados pelos filmes junto aos espectadores, como “Cinema Paradiso“. E também há RETRATOS FANTASMAS, que transita pelas três modalidades citadas ao pensar a arte em seus aspectos afetivos, materiais, culturais, econômicos, políticos e religiosos do realizador, do público e da sociedade.

(© Vitrine Filmes/ Divulgação)

O documentário parte das experiências pessoais do diretor Kleber Mendonça Filho para tratar do centro da cidade de Recife. A partir do ponto de vista da janela da casa do cineasta, onde morou por vários anos com sua família, a narrativa explora a história da área central da capital pernambucana através das salas de cinema que movimentaram os habitantes e influenciaram os hábitos sociais. Ao longo de sete anos, foram reunidas imagens de arquivo e fotografias e realizadas filmagens para abordar os efeitos do crescimento urbano sobre a paixão de ver e fazer filmes dos anos 1970 até hoje.

Kleber Mendonça Filho divide a narrativa em três partes. Na primeira, o alvo de seu interesse são as lembranças da própria juventude. As memórias entrelaçam o apartamento, a mãe e os primeiros filmes produzidos, demonstrando que a intimidade de sua família e de sua casa contribuíram para o trabalho com o cinema. Desse modo, a mãe aparece em registros fotográficos e televisivos como um símbolo da passagem do tempo, da importância de fontes e do amor pela sétima arte por ter sido uma historiadora que morreu ainda jovem, mas possibilitou momentos ternos com o filho levando-o ao cinema ou participando com ele de manifestações públicas. É interessante perceber também a força semântica do apartamento, espaço tanto de recordações sentimentais, lócus de transformações sociais quanto de criação artística. As reformas feitas na moradia traduzem a afetividade das relações familiares, a multiplicação de portões e grades informa sobre a sensação de segurança pelo enclausuramento e os primeiros curtas-metragens feitos pelo diretor incorporam o bairro, a vizinhança e a estrutura do local.

Na segunda parte, a olhar se amplia sem deixar os afetos de lado. Além das subjetividades dos realizadores, o cinema também se constitui em função das salas de exibição e dos elementos/indivíduos que fazem parte do ato de assistir aos filmes. Nesse segmento, as paixões pessoais se encontram com questões sociais mais amplas. O documentário passeia pelas ruas do centro de Recife tendo como eixos condutores os antigos cinemas de rua, por exemplo o São Luiz, o Moderno, o Art Palácio, o Veneza e o Trianon. As imagens de época recuperam a arquitetura dessas salas e as experiências de atrair milhares de pessoas para ver diversas obras, ao mesmo tempo destacam os projecionistas e os letreiros como partes essenciais de tal história. Em contrapartida, a passagem dos anos gerou a pauperização e a decadência da área central (processo similar a outras grandes cidades brasileiras), responsáveis pelo fechamento dos cinemas. Muitos fatores levaram a este fenômeno da década de 1970 até o presente: os investimentos migraram para a zona sul, as ruas se esvaziaram por medo da violência, os espaços foram comprados por igrejas, farmácias ou shoppings e novas possibilidades de apreciação fílmica chegaram às residências (TVs e, mais recentemente, os streamings).

A terceira parte completa o circuito da feitura de produções audiovisuais. A subjetividade do realizador se combina com as condições materiais de exibição e culmina na apreciação dos espectadores. Nenhuma obra estabelece seus sentidos e impactos sem o envolvimento de uma plateia, de um conjunto de pessoas que assiste, sente, reage, pensa e experimenta as imagens projetas em uma grande tela situada em uma sala escura com um potente equipamento de som. Então, a narrativa compara o espaço do cinema a um templo religioso, no qual o público segue um ritual particular. A comparação cresce quando frases são ditas para aproximar os filmes de uma experiência mística, como cinéfilos que dizem que certas obras devem ser vistas de joelhos. Não por coincidência, igrejas compram o espaço e preservam a arquitetura interna original. Porém, Kleber Mendonça Filho tem o cuidado de não criticar a chegada de uma igreja ao lugar, pois a comunidade que está ali constrói efetivamente identidade e vínculos emocionais.

Todos os segmentos se desenvolvem dentro de uma fluidez que relaciona tempo, espaço, afetos, sociedade e cinema. A passagem dos anos impacta uma cidade que é reformulada segundo uma lógica cada vez mais mercantilizada, a relação sentimental com a arte que alcança a nostalgia e a celebração apaixonada, as interações dos cidadãos entre si e com os filmes que ganham contornos até então inéditos e o sistema de produção/distribuição/exibição de obras artísticas que absorve hábitos de uma sociedade digital. Tantas mudanças são acompanhadas por diferentes registros de imagem, eles mesmos sintomáticos das condições tecnológicas específicas de cada tempo. Por isso, a narrativa traz fotografias em preto e branco, arquivos caseiros em Super 8, trechos de filmes em película e gravações em celulares modernos. Além disso, Kleber Mendonça Filho integra o documental ao ficcional, unindo sua narração em voice over com recortes da realidade e sequências de “Recife frio“, “O som ao redor” e “Aquarius“. Sendo assim, muitas cenas colocam em diálogo momentos do documentário e seus trabalhos ficcionais em uma complementação constante.

Conforme a narrativa expande os sentidos de tempo, espaço e intimidade para experiência cinematográfica, o cineasta trabalha o mesmo princípio dramático sob distintas perspectivas. O termo fantasma está no título porque atravessa as mudanças ocorridas na reconstrução da história dos cinemas do centro de Recife pelo olhar subjetivo proposto. Qualquer transformação deixa alguns elementos no passado e se abre para a diferença no presente, mas sem, necessariamente, eliminar tudo que havia anteriormente. Nesse ponto, os fantasmas a que o título se refere não são espectros ameaçadores. Eles são ausências do passado presentes na atualidade sob novas formas, tendo sido capturadas e projetadas pelas memórias, por ruínas arquitetônicas ou pelos filmes. São os casos da mãe do diretor, reencontrada em lembranças, fotografias e programas televisivos antigos; do cão morto de um vizinho, cujos latidos ainda podem ser ouvidos nas exibições de “O som ao redor“; e dos cinemas de rua, resgatados em parte por recordações e traços remanescentes da geografia urbana.

A recorrência de “fantasmas” encontra desdobramentos fantásticos na terceira parte quando Kleber Mendonça Filho se assume como ator e contracena com um motorista de Uber (também ator). Este instante fantasioso abre possibilidades de pensar a invisibilização como escape de uma realidade desagradável ou fruto de discriminações sociais. Afinal, a narrativa apresenta a ideia de que pessoas também podem desaparecer assim como cinemas de rua. Diante das escolhas criativas e do recorte temático, “Retratos fantasmas” pode parecer uma obra quense restringe a uma realidade muito específica. A localidade, as canções e as cenas de filmes de Kleber Mendonça Filho ou de outros realizadores poderis sugerir uma abordagem nichada em época, estilo e região. Um sério engano seria cometido se essa argumentação prevalecesse. O documentário fala sobre cinema como um todo, mostrando como inspirações e imprevistos moldam a arte, diferentes dimensões sociais e pessoais criam obras artísticas (autores, salas de exibição e espectadores) e afetividades formam ligações profundas entre objetos culturais e amantes do audiovisual. Em suma, uma homenagem do cinema para o cinema como história e emoção.