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“REVELANDO EADWEARD MUYBRIDGE” – Contra a neutralidade [24 F.Rio]

Quando se escreve sobre a história do cinema, os nomes dos irmãos Lumiére e de Georges Méliès sempre aparecem como ícones para o nascimento dessa arte. Ao avançar para períodos posteriores, outras figuras surgem como consolidadoras da linguagem cinematográfica, como D. W. Griffith. Durante muito tempo, enquanto se destacavam alguns nomes, invisibilizavam-se a importância de outros, como as contribuições de Alice Guy-Blaché. Processo similar, ainda que por outras razões, ocorreu com o fotógrafo Eadweard Muybridge segundo o documentário REVELANDO EADWEARD MUYBRIDGE.

(© Festival do Rio / Divulgação)

Eadweard Muybridge foi um importante fotógrafo do século XIX, fazendo registros de distintos ambientes naturais que se diferenciavam daqueles feitos por outros profissionais de seu tempo. No fim dos anos 1880, ele começou a compor sequências de imagens em movimento que contribuíram para os primeiros passos do cinema. Ainda assim, sua importância foi apagada por muitos anos e sua trajetória esquecida. Tendo ciência disso, o filme procura reconstituir momentos marcantes de sua vida, passando tanto por eventos controversos quanto por suas repercussões em diversas expressões artísticas até hoje.

O documentarista Marc Shaffer constrói uma narrativa que até pode se basear nos moldes convencionais de um documentário, mas não se limita a essa abordagem. Em sua estrutura, a produção segue uma ordem cronológica linear, utiliza imagens de arquivo como ilustração da narração e encadeira uma série de entrevistas com historiadores, fotógrafos, historiadores de arte e colecionadores (sendo Gary Oldman o rosto mais conhecido) para contar a trajetória do personagem. Em outras passagens, a narrativa mergulha nas obras de Muybridge através de recursos menos tradicionais, como a ida de alguns fotógrafos para os locais captados pelo biografado para gerar certa imersão e a simulação do efeito tridimensional de alguns de seus trabalhos para sugerir a sensação do público da época. Em qualquer uma das duas situações, fica evidente que Marc Shaffer quer mostrar que a fotografia não é neutra porque retrata a subjetividade do realizador. Apesar do uso de ferramentas menos convencionais para aproximar o espectador das fotografias, elas deixam de aparecer rapidamente e criam um desejo de quero mais nunca satisfeito.

Levando-se em consideração a ideia de que o trabalho de Muybridge oferece uma porta de entrada para sua visão de mundo, o documentário se desenvolve colocando em xeque o mito da objetividade. Essa questão se manifesta nas sequências em que a vida do fotógrafo é contextualizada dentro do panorama histórico dos EUA no século XIX, notadamente durante a Revolução Industrial e a Marcha para Oeste. Então, a fotografia é entendida no contexto de crescente urbanização e de avanços tecnológicos do período e o trabalho de registro das diferentes paisagens dos EUA é apropriado para legitimar o processo de expansão territorial e a inferiorização dos povos nativos no imaginário social. Esta discussão é tão significativa que a passagem do fotógrafo pelo Alaska é acompanhada pela fala de um indivíduo descendente dos povos originários, que afirma a importância do território para a cultura nativa. A ressalva nesse segmento fica por conta do esforço da produção de dissociar Muybridge das questões históricas de seu tempo, como se não se relacionasse com um cenário problemático de nenhuma forma.

Abordar a impossibilidade de ser neutro nas artes e na história, mas tentar descolar questões ideológicas mais diretas do trabalho de Muybridge se revela uma tarefa inglória. Ao longo de boa parte da narrativa, há a impressão de que uma supervalorização exagerada do personagem está em curso ao se reconstituir passagens de sua trajetória de maneira acrítica ou confortável por deixar de lado situações mais controversas. Logo, são abordadas amplamente a sensibilidade do olhar do fotógrafo ao criar suas obras sem tanto parâmetro com outras fotografias, a dedicação de um artista ao mergulhar por longos períodos nas condições dos locais que fotografava e a excentricidade de um homem ao mudar o próprio nome seguidas vezes. Como que para evitar críticas de que o retrato do personagem seria inocentemente positivo, Marc Shaffer trata também dos longos momentos em que abandonava a esposa para trabalhar e do assassinato cometido por ele em nome de uma suposta “honra familiar”. A princípio, o que poderia dar uma imagem mais complexa a ele, deixa um impacto contraditório porque as mulheres entrevistadas abordam o julgamento como uma demonstração da violência estrutural de uma sociedade patriarcal contra o feminino enquanto Gary Oldman descreve o episódio como um evento pitoresco.

Conforme a biografia de Muybridge se desenrola, suas contribuições para o cinema se tornam mais claras. Ao trabalhar com o político e magnata Leland Stanford, o fotógrafo foi incumbido de fotografar a corrida de um cavaleiro montado em um cavalo para comprovar que, no momento mais veloz, o animal retirava todas as patas do chão. Um trabalho pontual como esse se transforma em um resultado mais complexo, pois se desdobra na criação de equipamentos e de fotografias que realizam um processo capaz de gerar a ilusão de movimento naquelas imagens. Ao invés de se contentar em mostrar a força dessa descoberta, o documentário trabalha as implicações negativas desse trabalho a partir do fato de que Muybridge não foi devidamente creditado nessa realização. Consequentemente, o espectador é apresentado à relação entre as fotografias em movimento e o cinema como algo revolucionário (abrindo dúvidas se seria possível captar a verdade do mundo), e também ao esquecimento histórico do artista (outro exemplo da influência de subjetividades e ideologias nada neutras) a ponto de levá-lo a buscar outras ocupações para sobreviver e continuar exercendo sua profissão.

Os novos trabalhos que desempenhou mantiveram o princípio da imagem em movimento, mas ganharam contornos sociais diferentes. Vinculado à Universidade da Pennsylvania, ele continuou a criar fotografias que investiam em séries de movimentos comuns encontrados no dia a dia, como indivíduos praticando atividades esportivas ou afazeres domésticos e animais se deslocando ou emitindo sons característicos. Além de explicar como estas obras se tornaram possíveis do ponto de vista tecnológico e químico, o filme chama a atenção para aspectos relevantes da sociedade estadunidense do século XIX. Grande parte dos fotogramas trazia pessoas nuas, que reproduziam padrões sociais de gênero impostos por séculos de construções preconceituosas, e foram utilizados por ramos da ciência e da medicina para fazer avançar os saberes sobre o corpo humano, embora também refletissem concepções problemáticas que tentavam relacionar características físicas específicas e degradação moral, problemas psicológicos ou hierarquizações entre os povos. Somado a tudo isso, ainda há um detalhe que enriquece as análises dos trabalhos de Muybridge: suas fotografias não eram, necessariamente, produto de um registro espontâneo e objetivo, mas também fruto de manipulações conscientes feitas pelo seu criador.

Manipulação não é algo obrigatoriamente ruim quando se trata de construção de imagens cinematográficas. Manipular o que se vê em tela é uma operação natural que envolve moldar cada aspecto dos filmes para gerar determinado efeito no público sem considerar que este processo seria imparcial ou livre das subjetividades e visões de mundo do seu criador. Além de evidenciar as influências ideológicas nas fotografias e em contextos históricos específicos e mostrar (ainda que pontualmente) as várias camadas de um indivíduo, a produção escancara o que é. Em dado instante, a equipe de filmagem aparece em frente às câmeras enquanto conduzia uma entrevista; e na cena final, a narrativa se assemelha a uma ficção ao trazer Gary Oldman encenando ações menos comuns para um documentário. Assim, “Revelando Eadweard Muybridge” revela seu aparato cinematográfico para se assumir como uma construção subjetiva de parte da realidade e não a realidade em si. Nesse caso e na vida de seu personagem, neutralidade não é uma palavra tão forte.

*Filme assistido durante a cobertura da 24ª edição do Festival do Rio (24th Rio de Janeiro Int’l Film Festival).