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“RUSTIN” – Cristais que reduzem

Parece ter se tornado uma obrigação oferecer a absorção mais simples e agradável de toda e qualquer temática. O comprometimento máximo entre o espectador e a tela rege algoritmos e sistemas focados na produção de conteúdo, alinhando temáticas e autorias pelo viés de padrões facilmente administráveis. É particularmente penoso observar esse processo se apossando de questões de amplitude histórica e perfis biográficos, higienizados para o consumo do grande público. Apesar do carisma hipnotizante de sua persona, RUSTIN divide o mal dos projetos que se recusam a encarar a parte mais espinhosa de suas origens.

Perseguido por sua cor e sexualidade, Bayard Rustin foi um grande ativista racial que dividiu a sua época com ninguém menos que Martin Luther King, e foi responsável pela organização da maior marcha pacífica já registrada na história. O filme se debruça sobre o recorte de meses que antecederam o tal evento, se dividindo entre a exploração de aspectos de sua vida pessoal e política.

Dirigido por George C. Wolfe, é curioso observar o dinamismo da montagem que encabeça o projeto. Auxiliada por uma trilha sonora que busca ânimos no Jazz e emula o frenesi das situações com grande obviedade, a articulação entre planos prioriza uma compreensão visual bastante didática. Isso diz respeito a forma como certos quadros que se dedicam às expressões e demais sutilezas do elenco, por exemplo, são sempre descartados por imagens que cobrem paisagens e cômodos. Existe a intenção de reforçar os arredores onde as figuras sempre se inserem, retirando a dramaturgia por uma espécie de higiene da clareza.

(© Netflix / Divulgação)

Embora possa parecer um exemplo mínimo, esse recurso serve de evidência para o contentamento da produção com seu viés ilustrativo, incapaz de desenvolver um discurso distante da panfletagem acadêmica. Longe de querer inviabilizar a temática como justificativa suficiente para o longa, o argumento aqui está no âmbito da incapacidade da direção em extrair qualquer tridimensionalidade de suas linhas narrativas. Existe uma omissão muito importante de contextos fundamentais para o retrato escolhido, fazendo pouco jus a verdadeira magnitude das ações de Rustin. E da mesma forma, sua vida pessoal não transcende qualquer barreira da caricatura, linguisticamente avulsa não fossem alguns diálogos que tentam alinhar tais conflitos.

É como se a tentativa de reforçar o impacto de uma figura talvez menos observada que seus contemporâneos fosse suficiente, presumindo uma falta de maior conhecimento sobre a tal figura para esquivar a própria falta de vontade e aprofundar a personagem de Colman Domingo. Ator esse que, inclusive, torna o filme refém do próprio carisma e magnetismo, ainda que não possa ser responsabilizado pelo feito. A abordagem caricata que entrega ao ativista conquista aquele que o testemunha, mas corrobora com a lógica de uma indústria que esteriliza cada vez mais seus ícones e pontos de partida para a produção.

Isso é se referir não apenas a mediocridade estética dos dramas recentes de reconstituição histórica – as luzes pálidas que emulam um naturalismo inexistente, a roupagem de arquitetura e figurino que parece ser a mesma para cada produção -, mas a superficialidade dessa teatro de emulações de relevância e reciclagem de artigos de Wikipedia.

Seja em um contexto de premiações ou simplesmente pela alimentação do arquivo de um serviço de streaming, “Rustin” corrobora com o enquadramento das causas revolucionárias dentro de um perfil domesticado, pouco esforçado em explorar o lado mais obscuro dos contextos que atravessa. Ainda que talvez tenha sido escolhida pela notoriedade, a omissão da passeata, ao desfecho, surge como um exemplo de episódio com potencial a ser explorado por outro ponto de vista.

Resta a jornada de um homem que, apesar da vida íntima conturbada – e que ainda assim surge de forma pontilhada, cumprindo uma espécie de tabela que nunca se permite compreender de fato aquela personagem -, se apresenta como um apresentador do nosso entretenimento. Tenta arrancar choros, risadas, sorrisos e seduzir pela boa vontade da sua personagem. Se desvai a humanidade da sua figura, angelical em um retrato de quase retrocesso se pensarmos na ideia do “magical negro“, retratação de personagens negras que tenta compensar um histórico de marginalização dessa representatividade pela construção de figuras tão perfeitas quanto planas.

Desse modo, o longa reforça o mercado das biografias vazias e feitas à exaustão, se revezando na eleição de personagens e acontecimentos reais para terem a sua essência esvaziada. Por mais que seja digno reconhecer um potencial de dispersão de conhecimentos mais imediato, resta torcer para que esse setor encontre uma nova força propulsora, distante da necessidade de grandes marcas em atingir, de forma agradável e inofensiva, um público cada vez maior.