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“SE MEU APARTAMENTO FALASSE” – Ele teria muito a dizer

É bastante comum haver reclamações para os títulos brasileiros de filmes estrangeiros. “The sound of music” (“o som da música”, em tradução livre) se transformou em “A noviça rebelde”; “Under Capricorn” (“abaixo do trópico de Capricórnio”), “Sob o signo de Capricórnio”; “The hangover” (“a ressaca”), “Se beber, não case!”; “Memento” (“lembrança”), “Amnésia” – e assim por diante. SE MEU APARTAMENTO FALASSE é uma exceção, caso em que o título nacional é melhor que o original (“The apartment”). Realmente, o apartamento de Bud teria muito a dizer…

Querendo agradar a seus chefes e assim ser promovido na empresa, C. C. “Bud” Baxter empresta seu apartamento para que eles se encontrem com suas amantes. Os empréstimos acabam lhe causando muitos incômodos, o que piora quando Bud se interessa pela ascensorista Fran Kubelik, uma das mulheres levadas ao apartamento.

A inteligência de Billy Wilder está sobretudo no fato de apresentar um filme à frente do seu tempo. Em 1960, assuntos como suicídio e sexo fora do casamento eram enormes tabus, o que o cinesta, no roteiro escrito com I. A. L. Diamond, trata com delicadeza e, por vezes, sutil ironia. A moralidade da época é constantemente questionada, principalmente no que se refere ao casamento (é com enorme ironia que um dos chefes fala para sua amante que não leva muitas mulheres ao apartamento por ser um “homem casado e feliz”). O humor funciona como um véu que encobre a hipocrisia dos homens casados. Algumas vezes, esse humor funciona com acidez e de maneira provocativa, como quando Jeff Sheldrake fala para Bud que o inveja por ser solteiro e poder sair com qualquer mulher sem complicações (algo certamente fácil de solucionar no caso de Jeff). O que prevalece, todavia, é um humor que justifica a si mesmo, como a despretensiosa interação entre Bud e a sra. Margie MacDougall (Hope Holiday).

(© MGM Home Entertainment / Divulgação)

Boa parte da qualidade do filme repousa na atuação brilhante de Jack Lemmon, que tem em Bud um rapaz atrapalhado, ingênuo e bondoso. Atrapalhado, ele joga um jato de remédio que quase acerta Jeff; ingênuo, demora a entender as verdadeiras intenções de Jeff ao lhe dar ingressos; bondoso, elogia Fran e se mostra disposto a uma segunda tentativa de encontro mesmo após a frustração do primeiro. O talento cômico de Lemmon é perceptível, por exemplo, pelas expressões faciais eloquentes (dentre outras, de bêbado, de apaixonado e com a face torta após socos). Destaca-se também a maneira trêmula com que repete a expressão “com relação a” (sufixo –wise) quando está nervoso.

A relação que Bud tem com seus chefes é ambígua, já que empresta o apartamento (e até mesmo dinheiro) na esperança de ser promovido, um quid pro quo que demora para ser favorável a ele. A desvantagem, abordada de maneira cômica, acaba sendo enorme, uma vez que os vizinhos acham que ele é um bon vivant e a proprietária parece estar perdendo a paciência com ele. Nem tudo é o que parece para Bud: uma raquete não é usada para jogar tênis; os chefes estão sempre próximos, mas não por amizade. O protagonista não é respeitado por Dobisch (Ray Walston), Kirkeby (David Lewis), Vanderhoff (Willard Waterman) e Eichelberger (David White), que se dividem em promessas e ameaças para continuar usando e abusando do apartamento (com direito a reclamações por faltar uma bolacha que os agrada). Jeff Sheldrake (Fred MacMurray), diversamente, parece disposto a lhe dar vantagens concretas.

Uma das vantagens é a sala de trabalho. O diretor filma a sala principal em ângulo diagonal e pelo alto, passando a impressão de que ela é maior do que realmente é. De todo modo, Bud começa o filme junto a inúmeros colegas, compartilhando uma sala sem muito espaço e sem privacidade. Quando promovido, seu novo local de trabalho é exclusivo para ele, ainda que a parede de vidro não o separe por completo dos demais. A parede de vidro está também na sala da secretária de Sheldrake, o que não acontece com ele, que tem um cômodo grande e privativo apenas para si. Imageticamente, Wilder retrata as relações de trabalho que demonstram que a diferença entre o 19º e o 27º andar é mais profunda do que funções e salários.

É perspicaz colocar a Fran Kubelik de Shirley MacLaine como ascensorista da empresa, dado que é ela quem acaba, sem querer (nem saber), conectando Bud e Jeff. MacLaine é excelente no papel tanto no lado dramático (por exemplo, ao segurar o choro quando vê o cartão de Natal) quanto em seu viés cômico (sua língua afiada torna seu sarcasmo divertidíssimo). A senhorita Kubelik é também o centro da representação feminina, seja pela sagacidade (como na ameaça velada a um chefe que lhe dá “tapinhas”), seja pelo romantismo especialmente associado às mulheres na época (como na incapacidade de abandonar Jeff, a despeito de todas as provas de seu interesse poligâmico). A relação de Fran com as outras mulheres acaba sendo ambígua (como a de Bud com os chefes), já que, enquanto a senhora Mildred Dreyfuss (Naomi Stevens) incorpora a sororidade, a senhorita Olsen (Edie Adams) é vingativa e não se importa com os sentimentos da moça.

Se meu apartamento falasse” é uma produção que, diversamente de muitas comédias, ultrapassa o humor explícito e apresenta camadas inteligentes de expressão artística e reflexão social. Seria possível falar de sua metalinguagem (a referência expressa a “Grand hotel” é um deboche da situação de Bud relativa ao seu apartamento) ou de sua trilha musical (a música intradiegética alegre dá leveza à pesada cena em que Bud encontra Fran em seu quarto), porém o que mais chama a atenção é o próprio apartamento. Não é à toa que o dr. Dreyfuss (Jack Kruschen, um dos grandes destaques do elenco ao lado de Lemmon e MacLaine) e sua esposa estejam sempre atentos ao que ocorre no local. O apartamento presenciou conversas tristes, atos beirando o trágico, momentos de prazer e episódios engraçadíssimos. Se pudesse, ele de fato teria muito para falar.