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“SEM URSOS” – Medo da manifestação artística [46 MICSP]

A fronteira entre a realidade e a ficção é tênue para o cineasta Jafar Panahi. Filmado secretamente no Irã, seu SEM URSOS faz troça de uma (ir)racionalidade que sataniza o cinema e ignora que as mazelas sociais não são resultado das expressões artísticas (que muitas vezes as denunciam). O perigo está nas histórias falsas (lendas urbanas, por assim dizer), não em documentos imagéticos.

Enquanto um diretor de cinema descumpre uma proibição judicial de filmar, o casal filmado tenta arranjar um passaporte para sair do país. Sua presença movimenta o vilarejo onde ele se hospeda, até que uma suposta fotografia, tirada de outro casal – cuja união não seria socialmente aceita -, cria novos perigos para ele.

(© JP Production / Divulgação)

O diretor de cinema é o próprio Jafar Panahi, que está na mesma situação da personagem que interpreta. Em 2010, ele foi condenado por “propaganda contra o sistema” a seis anos de prisão e a vinte anos sem fazer filmes ou viajar para o exterior. “Sem ursos” não é, tecnicamente, um documentário, ainda que a situação de Panahi seja exatamente a descrita; trata-se de uma metaficção baseada em fatos. A parte metalinguística é o filme existente dentro do filme; a ficção se apresenta, ao menos em parte, nos dois casais da narrativa; os fatos são os mencionados.

Tornando ainda mais complexa essa relação entre o real e o ficcional, Panahi engana o espectador nos minutos iniciais sem utilizar um corte para delimitar a fronteira entre as narrativas – leia-se, a fronteira entre a narrativa do diretor que ele interpreta, de um lado, e a narrativa do filme que o diretor que ele interpreta está filmando, de outro. Depois, os cortes secos ajudam nessa delimitação, de modo que a prevalência de planos longos é indicativo da permanência narrativa dentro do mesmo arco. Seu domínio da mise en scène é exemplar, como ao final, em que a câmera subjetiva em um local com curvas amplia o suspense.

Panahi (a personagem) representa uma ponte entre dois arcos narrativos, cada um conectado a um dos casais. O primeiro casal é Zara (Mina Kavani) e Bakhtiar (Bakhtiyar Panjeei), que, perseguidos, querem sair do país e sua trajetória é objeto do filme de Panahi (a personagem e o verdadeiro). Este é o arco menos interessante do longa, dadas as informações diminutas sobre os dois (por exemplo, o que exatamente os levou à perseguição?) e o distanciamento do diretor (em razão, mais uma vez, da perseguição política). Reza (Reza Heydari) é o responsável por seguir as orientações de Panahi nas filmagens, porém alguns obstáculos dificultam esse trabalho, sobretudo a internet ruim e a reação dos habitantes do vilarejo à suposta fotografia.

O segundo casal é na verdade um triângulo: Gozal foi prometida a Yaghoob, porém estaria tendo um relacionamento com Soldooz. Entram aqui as tradições culturais e os costumes locais explicados pela mãe de Ghanbar, o anfitrião de Panahi – nomeadamente, a do cordão umbilical e a cerimônia do Lava-pés. É neste núcleo que o cineasta escancara uma irracionalidade (já que ela não sabe lhe explicar por que as mulheres ficam do lado esquerdo) mais receptiva ao surreal (quando ele pergunta se ele viu um gênio) do que à sua presença na vila de Jaban.

Em uma instigante espiral imprevisível, Panahi se sente perseguido pelas pessoas do vilarejo, não mais apenas pelo governo iraniano (o que não é pouco, evidentemente). Em determinado momento, um depoimento reconhecidamente sem amparo na lei nem na xaria é instrumentalizado para encurralá-lo, o que se torna cômico e, ao mesmo tempo, patético. Panahi ouve de um morador que aquelas pessoas são diferentes das pessoas da cidade e que bastaria fazer um juramento por Deus, ainda que o juramento não correspondesse à verdade. Ou seja, o que importa não são os fatos, mas a narrativa construída até mesmo mediante frágeis cerimônias.

Retornando ao arco narrativo do primeiro casal, Zara é a primeira a perceber uma falsidade desmedida. Na cena em que Panahi sobe um morro com Reza, ele vê a cidade iluminada ao longe, metáfora clara quando comparada à escuridão obscurantista do vilarejo onde está hospedado. A falsidade, porém, está em ambos: na primeira, em um governo que vilaniza a arte que o expõe; no segundo, na mitomania arraigada que igualmente encara a arte como antagonista (não é à toa que Ghanbar acha que será motivo de zombaria ao sair com a câmera). O perigo não está na arte ou no artista, mas nas pessoas que temem o que elas manifestam.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.