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“SOU SUA MULHER” – Sabendo pouco

Lidar com o mistério na ficção demanda um certo cuidado referente à medida do próprio mistério. O excesso pode ocorrer se, por exemplo, esvazia-se o suspense para uma revelação precoce. É problemático, igualmente, quando a revelação é tardia (correndo o risco de não surpreender) ou não ocorre (quando deveria). É na última categoria que SOU SUA MULHER se enquadra.

Eddie e Jean eram felizes a despeito da dificuldade em conseguir um filho que tanto queriam. Repentinamente, ele aparece com um bebê que, a partir de então, será o filho deles. Eddie tem negócios escusos, então a novidade não traz tanta surpresa. Também de maneira abrupta, ele desaparece, fazendo com que Jean precise se esconder dos perigosos homens que o procuram – além, é claro, de cuidar do novo filho do casal.

(© Amazon Prime Video / Divulgação)

Considerando a maneira pela qual a notícia do desaparecimento do marido é dado para Jean, fica evidente o risco que ela (e o bebê) estão correndo. Gae S. Buckley aproveita essa atmosfera de suspense para trabalhar o visual da película com a contraposição entre cores quentes e frias. As cores quentes indicam a segurança que ela pode sentir no local onde se encontra (sua casa tem tons amarelados; em sua rotina inicial, sozinha em casa, ela usa um robe rosado), ao passo que as cores frias, especialmente o azul (o vestuário de Eddie, o carro de Cal), simbolizam o perigo da aventura indesejada. O exterior não é um ambiente acolhedor, razão pela qual as novas moradias provisórias de Jean são progressivamente amadeiradas – uma delas é uma cabana inteira de madeira, como se fosse uma fortaleza onde ela pode ficar segura.

Tanto o design de produção mencionado quanto a trilha musical (assinada por ASKA) são capazes de transmitir eficazmente a atmosfera dos anos 1970, período em que o longa se passa. As músicas instrumentais ampliam a sensação que se deseja que o espectador sinta; nas canções cantadas, os artistas e as bandas vieram diretamente da época – nomes como Bobbie Gentry (“I wouldn’t be surprised”, no prólogo), Richie Havens (“Follow”, quando Cal deixa Jean na cabana) e Spaceark [“Don’t stop (Extended)”, na discoteca]. Quando não há um trabalho de mixagem transformando uma canção extradiegética em intradiegética (como a de Havens), existe um diálogo com o roteiro. É o caso de “(You make me feel like) A natural woman”, de Aretha Franklin, em que a noção de “natural woman” (“mulher de verdade”, em tradução livre) ganha uma ressignificação deveras inteligente.

O fato de ser uma mulher – Julia Hart – que assina o roteiro (em coautoria com Jordan Horowitz) faz toda a diferença para que “Sou sua mulher” trabalhe com tamanha organicidade a feminilidade em si. Em um primeiro momento, isso ocorre quando Jean e Cal encontram o policial, depois, quando ela revela a ele o breve passado de Harry. Em seu subtexto, o que o filme afirma é que ser mulher não é apenas ser mãe, e que ser mãe não é apenas ser a genitora biológica. Quando Teri afirma que, por alimentar a sua família, Jean é “a melhor chef do mundo”, não se trata de amenidades entre amigas (até porque elas acabaram de se conhecer), mas de um entendimento amplo sobre o afeto que Jean fornece como esposa e mãe. Há também uma cena bastante clara sobre sororidade (a da lavanderia), que, mesmo ligeira, é capaz de reforçar a ideia do feminino.

Na direção, é possível ver que Hart sabe o que está fazendo. Trata-se de seu primeiro trabalho de médio porte na função, revelando domínio do suspense (a cena do hospital e a do armário são muito eficazes), mas também da ação (mais ao final). O ritmo da narrativa poderia ser melhor trabalhado (demora consideravelmente para engrenar), mas esse é um problema menor diante de outro, relativo ao roteiro: o apego desmedido ao mistério.

A trama do filme é instigante. O que houve com Eddie? Por que Jean corre perigo? Ocorre, todavia, que Jean não tem a potência necessária para convencer na mensagem de empoderamento feminino. Seja pelo trabalho insuficiente de Rachel Brosnahan no papel (Marsha Stephanie Blake, como Teri, e Arinzé Kene, como Cal, são largamente melhores na produção), seja pela fragilidade da própria protagonista, Jean faz com que as incógnitas do roteiro se tornem incômodas ao afetar a própria Jean. O que se espera é que sua dependência e seu medo de ter de cuidar de si sejam ultrapassados, porém ela permanece sem saber praticamente nada e obedecendo aos outros quase o filme inteiro. Até mesmo a atendente do hotel tem maior domínio da situação do que ela! Dar mais respostas não seria essencial, mas seriam capazes de melhorar a experiência do espectador, que termina sabendo tanto quanto Jean – ou seja, pouco.