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“SPENCER” – A humanidade, o sobrenatural e o flerte

Ao invés de uma cinebiografia, SPENCER tem objetivos aparentemente modestos ao se debruçar sobre alguns dias da vida de Diana, a Princesa de Gales. Tecnicamente impecável, a produção é contaminada pela frieza que retrata e se salva apenas pela humanidade concedida à sua protagonista.

Em um período conturbado no casamento entre Diana e Charles, o Príncipe de Gales, a família real se muda temporariamente para o Queen’s Sandringham, sua casa de campo, para passar o período natalino. Farta do jogo de aparências, Diana se recusa a fazer parte dele e tenta agir mais de acordo com suas próprias vontades, porém não sem consequências.

(© Diamond Films / Divulgação)

O filme descreve a si mesmo como “uma fábula de uma tragédia real”, o que é irônico dado que o plot não é realmente fabulesco e a tragédia na verdade não ocorre. Não se trata de uma fábula porque o roteirista Steven Knight não tem personagens animais (que é uma das características do gênero literário), pelo contrário, Diana é bastante humanizada no texto. Sua primeira fala, por exemplo, envolve um palavrão (algo degradante para um membro da família real) dentro de um contexto em que ela está, literal e geograficamente, perdida. Tampouco se trata de uma tragédia, pois os dias vividos pela protagonista, mesmo tristes, são muito anteriores ao acidente em virtude do qual ela faleceu.

Kristen Stewart está impecável no perfil intimista da Princesa de Gales. Mesmo que fisicamente ela não seja tão parecida com a verdadeira Diana quanto se gostaria, sua interpretação tem bastante personalidade, sem prejuízo da sutileza, quando necessária. Perante pessoas quaisquer, Diana surge delicada e constrangida ao assumir que está perdida; adiante, perante os empregados, ela não aceita o fingimento que lhe é imposto e admite ter ciência, por exemplo, do(s) caso(s) extraconjugal(is) de Charles. Quando seus olhos cruzam os de Camilla Parker Bowles (Emma Darwall-Smith), as lágrimas precisam ser contidas em um período no qual somente o passado consegue ser acolhedor.

Knight é afiado nos diálogos, sobretudo naqueles travados entre a protagonista e os filhos – William (Jack Nielen) chega a questionar se ela gosta que a família se zangue com ela, percebendo uma espécie de prazer na rebeldia da mãe. Em uma de suas falas, Diana ensina William e Harry (Freddie Spry) que, na família a que pertencem, não há futuro, apenas passado e presente, que são a mesma coisa. Timothy Spall surge como o Major Alistar Gregory, o escudeiro da Rainha-Mãe, mas antes de tudo uma figura ambígua e complexa que aparentemente simboliza as tradições detestadas por Diana, mas que pode se revelar muito mais do que isso. Spall encanta por parecer uma figura detestável, o que é elevado quando o diretor Pablo Larraín decide dar tons de terror ao seu filme (único aspecto positivo dessa decisão).

Embaixo da escada, a silhueta do Major sugere uma assombração, quando na verdade as assombrações efetivas estão na cabeça de Diana. Seus delírios, porém, destoam em demasia com a proposta de “Spencer”, majoritariamente “pés-no-chão”. A trilha musical, da mesma forma, é mais coerente quando assume viés melancólico do que quando soa desconcertante – não à toa, a energia da única música não instrumental (“All I need is a miracle”, de Mike & The Mechanics) é contagiante e explosiva tal qual o caminho narrativo que ela acompanha. O filme vai bem enquanto Diana abraça a própria rebeldia, por vezes com sarcasmo – ao pedir para ficar sozinha para ter um momento íntimo, por exemplo -, em outras, com raiva – como ao enfrentar Charles (Jack Farthing) durante a caça. As interações verbais, tais quais com a confidente Maggie (Sally Hawkins) e o compreensivo Darren (Sean Harris), são tão impactantes quanto as não verbais (os olhares de reprovação desferidos pela Rainha de Stella Gonet são eloquentes). Por outro lado, quando Larraín se aventura no surreal, o longa perde força.

Visualmente, a fotografia é primorosa e transmite com muita eficácia a frieza do local, simbolizada pelas árvores sem folhas, pela neblina e pelo uso de cores frias – o que se soma aos belíssimos figurinos. O design de produção é compatível com o sabido luxo ostentado pela família real, o que dispensa qualquer tipo de ênfase dado o desgosto de Diana por esse luxo (basta ver em qual estabelecimento ela leva os filhos). Diante de uma estética elogiável, é difícil ressalvar a atmosfera fria que é resultado de uma proposta morna. O sobrenatural não surpreende, nem empolga; o real é um exercício imaginativo sem fortes emoções. Evitar glorificar uma figura popular como Diana é um aspecto positivo do longa, porém lhe falta um espírito contagiante. É sintomático que sua punch scene não seja um salto grande o suficiente para tirar a película de um ritmo lento e que flerta com o tédio.