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“TÁR” – Fragmentos de um debate

Existe uma dúvida moral que paira sobre os admiradores da arte na contemporaneidade: é possível separar a arte da/do artista? Em TÁR, é exatamente esse questionamento que traça a espinha dorsal da narrativa, a partir de uma protagonista eticamente dúbia a despeito de um currículo invejável.

Com grandes feitos alcançados, Lydia Tár parece estar no ápice de sua carreira na música clássica ocidental. Reconhecida como uma das maiores regentes e compositoras em atividade e no comando da Filarmônica de Berlim, sua credibilidade desmorona à medida que os bastidores de sua vida se tornam públicos.

(© Universal Pictures / Divulgação)

O diretor e roteirista Todd Field apresenta ao público uma obra singular, a despeito de o questionamento não ser novo e de se tratar de uma cinebiografia de uma artista (ressalte-se, fictícia). Um dos principais elementos da singularidade de “Tár” reside na construção do texto que, apesar de estar em uma estrutura de arquitrama, distancia-se da explicitude dos outros scripts desse formato. Isso porque o filme é composto de fragmentos e sugestões, sempre propositais, que o tornam mais complexo. Algumas informações são singelas e não aprofundadas (como o porquê das pílulas); outras, simplesmente nevrálgicas (há fundamento para a desconfiança de Sebastian com a chegada de Francesca?). Há muito que fica em uma zona cinzenta na qual cabe ao espectador realizar a sutura, a depender da sua interpretação. Nada explicativo, o filme deixa respostas para o futuro, como na conversa entre Tár e Eliot sobre Sebastian e Andis (até então, desconhecidos ao público). Isso quando não deixa as perguntas simplesmente sem respostas (a matéria do jornal corresponde à verdade?), abraçando vigorosamente o poder da sugestão (como a viagem com Olga). É justamente essa a sua genialidade: as pontas soltas não são falhas de roteiro, mas elementos que o enriquecem para imprimir dubiedade.

Fica claro, no entanto, que Tár é uma mulher que cria atritos com facilidade, o que significa que sua degradação é consequência de suas próprias atitudes reprováveis. Os reflexos da sua conduta podem ser desproporcionais, já que não se sabe se os atos que lhe são imputados correspondem rigorosamente à verdade, mas é evidente que eles são completamente inverídicos. Por exemplo, é notória a diferença de tratamento concedido por Tár a Sebastian (Allan Corduner) quando comparado àquele dado a Olga (Sophie Kauer), gerando indícios fortes de que ela é uma pessoa de integridade muito prejudicada.

Soma-se a isso o próprio modo de pensar da regente, que demonstra uma aversão à cultura contemporânea (chamando os outros de robôs), sobretudo no politicamente correto (ao comparar a dicotomia “o maestro” e “a maestrina” com a forma única de “o astronauta”). Tár é detalhista em sua vida profissional e pessoal (como ao atentar para um homem em outra mesa) e fica progressivamente atormentada por ruídos (seja de um metrônomo, seja de uma porta rangendo). Esse o processo de degradação pelo qual ela passa é transmitido brilhantemente por Cate Blanchett em mais uma de suas geniais atuações. Avassaladora, Blanchett traduz com igual pujança o lado afetuoso de Tár (ao acolher a namorada com palpitação) e o agressivo (ao falar com uma bullie), reafirmando a complexidade da personagem. Sua linguagem corporal é rústica tal qual a frieza de seu figurino – sempre em tons de azul, branco ou preto, em vestuário de cortes retos que não marcam seu corpo. As roupas são lisas e formais, jamais com a utilização de cores quentes. O figurino se torna um meio para contrapô-la aos demais, como na cena na Juilliard, em que um aluno, apesar de usar as mesmas cores, elas estão trocadas entre as vestimentas, além de sua camisa ser listrada.

As roupas são um exemplo de como Field se utiliza da linguagem não verbal para transmitir os fragmentos mencionados. É o que ocorre, por exemplo, na conversa após a entrevista, em que a mulher com quem Tár conversa segura a sua mão, ou então com a perna do aluno balançando sem parar. Nem sempre, porém, o não verbal aparece de modo mais fácil de perceber: na cena em que a protagonista, sozinha, toca piano em casa, a cor amadeirada do instrumento se destaca face ao monocromático campo em que aparece (o cinza do design de produção do apartamento e da roupa de Tár), como se a música fosse algo à parte. A obra é econômica nos cortes, deixando que a potência do roteiro, da atuação e da mise en scène falem por si sós. Assim, Field aproveita a profundidade do campo para colocar as personagens dialogando no fundo do cenário, o que enriquece o campo (na cena em que comunica Sebastian de sua decisão, na cena com Olga no piano etc.). Além disso, a filmagem ocorre muitas vezes em planos abertos, mostrando as personagens de corpo inteiro e colocando o espectador na posição de observador distante – situação ratificada na cena do carro, filmada em câmera subjetiva no banco de trás.

Tecnicamente sublime, “Tár” é um ensaio que desliza apenas na dúvida entre seu questionamento inicial e no aprofundamento da personalidade de sua protagonista. Há diálogos expressos sobre a visão da regente de que a/o artista não se confunde com sua obra; sua própria trajetória é sobre isso. Porém, o longa se limita à área provocativa, debruçando-se aquém do desejável a respeito do assunto. Tár tem um entendimento do tema; o filme parece ter outro. Aliar os dois lados pode ter sido a única tarefa que não foi executada à altura das demais.