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“TEMPOS DE BARBÁRIE – ATO I: TERAPIA DA VINGANÇA” – Embate esvaziado

A violência urbana e suas consequências sociais estão na base de TEMPOS DE BARBÁRIE – ATO I: TERAPIA DA VINGANÇA. A jornada da protagonista envolve uma degradação psicológica e moral que a faz vivenciar situações de vida ou morte e enfrentamentos contra si mesma e uma série de antagonistas. As experiências extremas pelas quais ela passa contemplam criminalidade, tráfico de drogas, corrupção policial, insegurança nas grandes cidades e justiça com as próprias mãos. Como proposta, a narrativa estabelece um arcabouço promissor de conflitos. Como realização, o potencial é diminuído pelo esforço de ser mais complexo do que é.

(© Paris Filmes/ Divulgação)

Carla é advogada e mãe de Bruna. Em um dia, ela retorna de carro para casa até ser bloqueada por ladrões em um arrastão. Durante a tentativa de fuga, sua filha é baleada e precisa ser internada no hospital. Como a polícia não dá sinais de conseguir prender o culpado e o quadro clínico da menina é grave, Carla escolhe um caminho extremo: buscar o criminoso que atirou Bruna para se vingar. A cada novo risco que ela assume, os limites do que ela poderia ou não fazer se impõe com uma gravidade mortal.

O percurso dramático de Carla é o centro nervoso da produção, o que faz Cláudia Abreu ser tão essencial para a narrativa. A atriz é compelida a lidar com diversas pressões que a personagem sofre, encarnando uma descida profunda em direção a um abismo moral. Em uma dimensão externa, Cláudia Abreu faz as emoções transbordarem de forma radical quando elementos sociais colidem contra Carla e a tornam o arquétipo de um representante desesperado da classe média em face da violência urbana. Como as investigações policiais são ineficientes e a criminalidade se estende por toda a cidade do Rio de Janeiro, a protagonista reproduz o discurso autoritário de bandido bom é bandido morto. Em uma dimensão interna, a atriz expõe com sutilezas as dores e questionamentos de quem não consegue ajudar a filha e contraria a ética de sua profissão, especialmente nos momentos intimistas em que abraça ou apenas observa a menina.

No entanto, a atuação de Cláudia Abreu é, muitas vezes, interrompida por escolhas formais do diretor Marcos Bernstein. A principal delas é a fragmentação cronológica de sequências que se passam em diferentes temporalidades e são integradas na mesma ação dramática. É o que ocorre, por exemplo, quando Carla persegue um homem que julga ser o mesmo que atirou na filha, pois a perseguição é entremeada por lembranças do tiroteio na rua e pela narração em voice over de um senhor que se descobre mais tarde ser um participante de uma terapia para pessoas que perderam entes queridos de forma violenta. Então, passado, presente e futuro narrativos se entrelaçam e se alternam. Na prática, as três linhas temporais são entrecruzadas tão rapidamente que o sofrimento e o desejo de vingança da protagonista são drenados, não havendo tempo suficiente para evidenciar os transtornos emocionais causados por sua perda. Enquanto se observa essa construção narrativa, fica a sensação de que o cineasta cede à tentação de fazer firulas visuais para tornar cada momento o mais intrincado possível.

Escolher as estratégias mais complexas e dar uma aura profunda são os caminhos trilhados por Marcos Bernstein para legitimar seu projeto. A impressão é de que o maior esforço geraria, necessariamente, o melhor trabalho, por isso o realizador complica o que não precisaria ser tão complicado para promover um impacto dramática maior. No mesmo raciocínio de procurar a execução mais difícil, a primeira metade da narrativa segue sempre em ritmo acelerado e não deixa tantos instantes de respiro para o público e os personagens. Assim, o tiro contra a filha, o desespero do socorro, o desagrado com a teria coletiva, a aceitação da vingança, o fracasso do plano de justiçamento e duas decisões extremas se sucedem com uma decupagem e uma montagem típicas de filme de ação. A intensidade dos acontecimentos e a velocidade da abordagem acabam se chocando com o próprio arco dramático de Carla, que fica a mercê de breves de pausas do roteiro para se desenvolver.

Do mesmo modo que as escolhas criativas entram em atrito com a dramaturgia, os personagens coadjuvantes não estão em sintonia completa com a unidade dramática da protagonista. Nem todos dialogam tão bem com a advogada, seja como harmonização, seja como contraste. O marido vivido por César Mello tem pouco a acrescentar, já que se mantém no mesmo tom sem nuances enquanto se opõe às decisões da esposa. O colega advogado que estimula a realização da justiça com as próprias mãos é interpretado por Alexandre Borges fora do tom realista vigente ao encarná-lo como uma caricatura que reafirma constantemente sua ambiguidade. E Natalia é a única que mais se relaciona com a protagonista, uma vez que Júlia Lemmertz cria uma terapeuta que se opõe à sede de vingança sem, contudo, conseguir se manter imune às influências destrutivas da outra mulher. Quando conta suas experiências pessoais e acompanha mais de perto as ações de Carla, ela ganha um arco dramático ainda mais conflituoso.

Na segunda metade da narrativa, Marcos Bernstein desenvolve a encenação com outras escolhas estéticas que levam a dramaturgia para dinâmicas distintas. Até certo ponto, as sequências que vêm depois de uma frustrada resolução radical da protagonista parecem encontrar um tom mais apropriado para a trama em si. A vingança se divide em três personagens e cenários, sendo resolvida visualmente com uma abordagem seca de poucos planos para mostrar a transformação de Carla em uma vigilante vingativa. A princípio, a procura e o embate contra os homens envolvidos de alguma forma na tragédia que vitimou Bruna passam a ser encenados com maior realismo e sem firulas narrativas. Entretanto, a conclusão das cenas de ação perde parte do efeito quando novamente o realizador insere trecho de linhas temporais variadas para o mesmo evento. Ao invés de valorizar a tensão presente, a sequência se dispersa levando o espectador para o passado e futuro.

A chegada do clímax no terceiro ato mantém a sensação de que poderia ocorrer algo mais expressivo do que realmente acontece na construção cênica propriamente. Inicialmente, o confronto final é organizado com uma dinâmica inesperada, Carla e Natalia são transformadas por seus arcos narrativos e um dilema moral pertinente se estabelece. Os três elementos seriam capazes de fazer o filme ter um desfecho impactante, não fosse novamente a quebra excessiva da linearidade dos fatos. Na primeira vez, a fragmentação prejudica a fragilização emocional da protagonista; na segunda, compromete a tensão das cenas de ação; e na terceira, esvazia o conflito entre decidir se vingar sem sofrer com arrependimentos ou manter as lembranças da filha intactas sob o custo de conviver com a dor de suas atitudes. Em suma, “Tempos de barbárie – Ato I: terapia da vingança” desdramatiza a narrativa sem parecer ser essa sua intenção.