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“TERCEIRA GUERRA MUNDIAL” – De vítima a ofensor, mas todos perdem [46 MICSP]

Ignorando seu título pretensioso, TERCEIRA GUERRA MUNDIAL é um drama sobre a rima presente na História – razão pela qual, em seus minutos iniciais, aparece a citação de que “a História não se repete, mas costuma rimar”. Há de fato um prejuízo imaterial (de vida, muitas vezes, sem desconsiderar o prejuízo material) para aqueles em situação de vulnerabilidade, seja em uma guerra, seja no cotidiano. O protagonista do longa não consegue sair do binarismo vítima-ofensor, o que torna ainda mais triste a sua trajetória.

Shakib perdeu sua esposa e seu filho em um terremoto anos atrás, não conseguindo superar o luto. Ele mora na loja de um amigo, executa serviços braçais sem vínculo trabalhista e se relaciona com Ladan, uma profissional do sexo surda. Uma das obras em que trabalha se torna o cenário para um filme sobre a Segunda Guerra Mundial e o diretor o escolhe para interpretar um papel importante. O que parece ser o início de uma melhora de vida se torna um pesadelo quando Ladan lhe pede ajuda para fugir de seu cafetão.

(© 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo / Divulgação)

Escrito pelo diretor Houman Seyyedi junto de Arian Vazirdaftari e Azad Jafarian, o roteiro de “Terceira guerra mundial” é extremamente requintado tanto do ponto de vista narrativo quanto em relação ao desenvolvimento de personagem. Há elementos que funcionam como armas de Chekhov (o som alto de trem na casa do amigo, a pulseira…), mas é ainda mais rica a forma como a narrativa costura a sequência de acontecimentos. No início, Shakib é apenas um trabalhador braçal que se afoga no próprio luto, mas a sua ascensão na produção do filme sobre a Segunda Guerra opera como escada que o leva a uma porta de um recinto, no mínimo, esperançoso. A chegada de Ladan, ainda enquanto incidente incitante, gera uma instabilidade suficiente para um verdadeiro efeito dominó de incertezas, tragédias e conflitos.

O script é deveras inteligente ao se valer do inesperado para gerar a dúvida no espectador, que fica à mercê de uma miríade de consequências chocantes. Os fatos da diegese ganham versões dentro de um emaranhado confuso – e mesmo a confusão, aqui, adquire um sentido positivo, pois repousa no campo da incerteza. Existem, talvez, hipóteses mais prováveis para explicar o rumo dos acontecimentos, mas a certeza é uma ilusão e justamente essa condição é o que torna o texto magnético.

Do ponto de vista da construção de personagem, tanto o roteiro é hábil em moldar Shakib como a corporificação da instabilidade quanto seu intérprete, Mohsen Tanabandeh, lhe concede o senso de humanidade que conduz a uma empatia por parte do espectador. Shakib começa seu arco dramático em uma situação muito precária (sem família, sem casa, sem dinheiro), se depara com a possibilidade de melhora e ainda assim resiste a ela e arrisca tudo por uma devoção até então desconhecida por Ladan (Mahsa Hejazi). Se ela ri de seu bigode, ele o tira; se ela não quer viajar para Teerã, ele muda de ideia. A surdez de Ladan é metáfora para a sua fragilidade, motivação para que Shakib sinta, com maior força, a necessidade de protegê-la. Seu histórico depressivo (basta ver as cicatrizes) é ofuscado por uma mulher que assume um interesse egoísta no início, mas que o convence de ter nutrido um afeto autêntico.

Tanabandeh impressiona quando Shakib entra em um estado de cólera visceral, enxergando todos como inimigos. A bela trilha musical instrumental enfatiza o lado dramático da película, mas é a raiva do protagonista que mais chama a atenção. A rima se faz presente quando se comparam as cenas de encenação do Holocausto com as cenas da ira de Shakib. Naquelas, a música de estranheza, aliada a um design de produção adequado (locais sujos, iluminação escassa, figurino coerente) e a uma mise en scène precisa (o amontoado dos homens, que parecem perdidos, é um grande acerto), traduzem um espetáculo digno da mais alta censura (e fiel à História). A virtude da direção está no fato de que nestas cenas há também um espetáculo vil, que ganha tons de imundície mediante o uso das condições climáticas (chuva, lama e neve).

Ladan sonha com uma vida imaginária em uma casa imaginária, como a que desenha no ônibus. Entretanto, o real parece estar perto dela, como aponta Shakib também dentro do ônibus. A casa, todavia, não é real, pois apesar de imageticamente crível (os tapetes e bandeiras rubras, os recintos variados, o sofá confortável), ela não existe enquanto casa e pode deixar de existir mesmo enquanto cenário se for do interesse do filme. Se Shakib foi vítima das circunstâncias (o terremoto) anteriormente, seu destino parece mais nas mãos do produtor e do diretor do filme do que nas suas próprias mãos. É por isso que a solução mais fácil é se tornar ofensor. E, como em uma guerra, não há vitoriosos: todos perdem.

* Filme assistido durante a cobertura da 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.