Nosso Cinema

A melhor fonte de críticas de cinema

“TESLA – O HOMEM ELÉTRICO” – Biografia moderna

Biógrafos costumam se ver às voltas com dois desafios primordiais em seu trabalho: lidar com a ilusão de tentar fazer o biografado parecer uma unidade sempre coerente sem contradições, e ignorar o valor da ficção ou da imaginação para preencher as lacunas na reconstrução de histórias de vida. Da Antiguidade até a modernidade, as biografias foram escritas dando um sentido linear para os biografados e rejeitando o uso de técnicas ficcionais mais explícitas. A partir da modernidade, mudanças ocorreram com biografias que assumiram um caráter mais flexível, dinâmico e subjetivo. Essa segunda faceta inspira TESLA – O HOMEM ELÉTRICO, que não foge das contradições do trabalho biográfico nem enfraquece a subjetividade de seu realizador.

(© Festival Filmelier no Cinema / Divulgação)

Nikola Tesla foi um inventor e engenheiro sérvio que deu importantes contribuições para o sistema moderno de fornecimento de eletricidade em corrente alternada. Na trama do filme que segue parte de sua vida, o homem transita entre uma genialidade revolucionária, uma ambição desenfreada e uma frieza emocional. Na passagem do século XIX para o século XX, Tesla mantém uma relação problemática com Thomas Edison enquanto realiza experimentos com a energia elétrica e cria um novo sistema mundial de transmissão de eletricidade sem fio. A dedicação ao trabalho também cria barreiras na relação entre o inventor e Anne Morgan.

A trajetória de vida de Tesla poderia ser encenada da maneira mais tradicional possível, passando por uma infância traumática, pela descoberta de seu interesse profissional, pela ascensão pública com obras impactantes e pela queda gerada pelo anseio por inventos cada vez mais revolucionários. Porém, o diretor Michael Almereyda concebe a biografia como um trabalho criativo que não daria conta de passar por cada etapa da vida de um personagem real. Por isso, ele escolhe um recorte para levar adiante a criação biográfica: a relação do engenheiro com seu contexto histórico. Sendo assim, a narrativa não se limita a criar uma sequência completa e linear de eventos para toda a trajetória do protagonista, preferindo tratar a disputa entre Tesla e Edison a respeito do tipo de corrente elétrica a ser utilizada nas invenções da época. Em paralelo, o cineasta não se sente obrigado a começar na infância e a passar pelas fases subsequentes em ordem, pois reminiscências da relação com a mãe são inseridas em momentos diversos como um aspecto fragmentário que não se enquadra em um tempo específico.

Se a recriação de uma história de vida no cinema é limitada pelo tempo de duração da obra e pelo fato de não se poder esgotar todos os eventos na existência do personagem, o papel do biógrafo não passa pela criação de um relato objetivo e imparcial. Qualquer biógrafo intervém sobre a biografia e faz seu trabalho a partir de sua própria visão de mundo, mesmo que nem sempre evidencie sua subjetividade na construção da narrativa biográfica. Não é o caso de Michael Almereyda, que opta por representar Nikola Tesla através da característica que julga definir o homem. A trajetória pública do protagonista foi marcada pela busca de novas descobertas e pelo envolvimento com tecnologias modernas para sua época. Então, o cineasta escolhe trazer esses aspectos para a identidade visual da produção, orientando o diretor de fotografia Sean Williams a iluminar grande parte das sequências com cores e luzes vibrantes. A estilização visual faz com que as lâmpadas e outros sistemas de iluminação elétrica se tornem personagens, que integram as cenas e criam abordagens dramáticas expressivas para os cenários tomados pela escuridão.

O cineasta também demonstra sua subjetividade ao evidenciar suas próprias reflexões sobre o fazer biográfico. Michael Almereyda intervém diretamente na narrativa ao se colocar na figura de uma narradora que, conscientemente, comenta sobre Tesla e os demais personagens ao seu redor. Quem ocupa o papel de narradora é Anne Morgan, filha do investidor J.P. Morgan e por quem Tesla teve uma tensão sexual não concretizada. Diante de uma tela eletrônica, ela questiona o público sobre os fatos mostrados e sobre eventuais resultados de pesquisas feitas no Google sobre cada personagem. Este recurso expõe o quanto a realização de uma biografia sobre uma figura do passado está relacionada às questões motivadoras do presente. Logo, Anne, que pertence ao passado diegético, comporta-se como alguém do presente vivido pelos espectadores ao assumir a narração; e os inventos com energia elétrica, usos tecnológicos do passado, encontram-se com a internet, tecnologia do presente. A própria quebra da linearidade narrativa feita pela narração já demonstra a interferência do realizador na biografia.

Em qualquer filme, a caracterização do protagonista e de seu arco dramático precisa ser desenvolvida. No entanto, como integrar essa necessidade do cinema à escolha de fazer uma biografia moderna pautada pela fragmentação da identidade do biografado e pela aceitação do imprevisível nos rumos do sujeito? A resposta oferecida é dar alguns vestígios para o personagem sem ter a pretensão de esgotar todas as suas característica e contradições. Nesse sentido, a atuação de Ethan Hawke fornece pistas de como seria a leitura da obra a respeito de Tesla, pois o ator cria um homem taciturno que se refugia nos próprios pensamentos, evita contatos íntimos com outras pessoas, assemelha-se a um de seus inventos por conta do tom de voz robótico e move suas ações a partir do desejo de revolucionar a engenharia de seu tempo. Os demais personagens e atores também ajudam a diferenciar a imagem do engenheiro, já que o desejo de poder de Edison transmitido por Kyle MacLachlan, a inteligência emocional de Anne apresentada por Eve Hewson e o tino para os negócios de George Westinghouse e J.P. Morgan evidenciados por Jim Gaffigan e Donnie Keshawarz fazem contrapontos interessantes a Tesla.

Mesmo que a proposta biográfica adotada valorize as quebras, as lacunas, as contradições e as marcas visíveis do diretor, a narrativa não despreza o desenvolvimento do protagonista e de seus conflitos. É verdade que a progressão dramática continua fora de padrões convencionais para uma cinebiografia, afinal a estilização visual e os desvios do fluxo narrativo seguem como característica recorrente. A partir do segundo ato, algumas imagens ganham contornos artificiais controlados por um realizador que se interessa na experimentação da textura da imagem e deixa de lado a objetividade. Assim, a relação entre os personagens e os cenários se orienta por essa subjetivação dos planos cinematográficos, como se pode ver, por exemplo, nos momentos em que telas claramente artificiais mostram as Cataratas do Niágara atrás de Tesla e uma mina atrás de Edison. Em outros instantes, o filme imagina o que poderia acontecer se os personagens agissem de maneiras diferentes e deixa claro se tratar de uma divagação que, logo depois, retorna para o fluxo natural de acontecimentos.

Caso o olhar se direcione puramente para os eventos em si, a obra também sabe abraçar certa dose de convencionalismo para situar a queda do protagonista após alguns anos de sucesso profissional e triunfo material. Em uma leitura menos alegórica, é possível interpretar que a ambição exagerada ou os limites de seu tempo colocaram barreiras para a concretização de vários projetos de Nikola Tesla e levaram-no a um final de vida mais sofrido. Porém, “Tesla – O homem elétrico” mantém a coerência artística de levar o formalismo cinematográfico até o desfecho. As sequências em que o protagonista canta em um ambiente banhado por cores fortes, a narradora levanta hipóteses para a decadência do inventor (ser ambicioso ou autoconfiante em um nível arrogante e estar à frente de seu tempo) e uma cadeira é exibida em um espaço vazio cercado por luzes intensas proporcionam experiências singulares para a encenação de uma trajetória de vida. Afinal, se Tesla buscou superar as convenções de sua época ao lidar com novas tecnologias, Michael Almereyda buscou dar ao personagem uma cinebiografia que superasse convenções do gênero.

* Filme assistido na cobertura do Festival Filmelier no Cinema, de 2023.