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“THE OUTSIDER” – Sufocante descida ao inexplicável

Em muitos casos, enquanto se lê obras de Stephen King, imagina-se como seria uma versão audiovisual daquela história. Potencialmente, é o que acontece com uma escrita que já nasce próxima do estilo cinematográfico e desperta novamente o interesse de fãs, realizadores e produtores nos últimos tempos. Considerando tais potencialidades, a HBO investiu na adaptação de THE OUTSIDER, livro policial com terror psicológico de traços sobrenaturais que ganhou o formato de série.

(© HBO / Divulgação)

Tendo como inspiração o material literário homônimo, a produção televisiva se inicia com o assassinato brutal do menino Frankie Peterson nos bosques da Geórgia e, logo depois, passa para as investigações conduzidas por Ralph Anderson. Esses dois fatos culminam na acusação de Terry Maitland, professor de Inglês e treinador da liga infantil de beisebol, como responsável pelo crime. Entretanto, o desfecho aparentemente rápido e indiscutível é colocado em xeque quando elementos antinaturais desafiam explicações racionais, levantando dúvidas sobre o verdadeiro assassino.

O showrunner Richard Price e o roteirista Dennis Lehane não se preocupam, simplesmente, em transpor a fonte original sem construir seu próprio entendimento da trama. A maneira como a contam concilia o drama de figuras atormentadas e um mistério atrativo para o espectador interessado em resolvê-lo como um detetive, baseando-se no peso que o imprevisível pode ter sobre os personagens. Cada indivíduo que ganha importância na tela precisa lidar com sentimentos e fatos negativos ou trágicos que sufocam suas trajetórias e promovem reviravoltas grandiosas em suas vidas: morte, luto, preconceito, descrença, intolerância e ódio se impõem inesperadamente em todos aqueles que se cruzam após uma espiral de violência irracional.   

A perspectiva melancólica e angustiante que acompanha os episódios depende muito do efeito que o imponderável causa no trio de maior destaque do elenco. Mercy precisa tocar a própria vida e das filhas pequenas após a prisão do marido, suportando a intransigência dos vizinhos que culpam as três pelo que Terry é acusado e os equívocos cometidos pela polícia durante a investigação; Ralph enfrenta uma sucessão de dores e desafios à sua realidade que o torna um homem machucado pelo tempo, desde a perda precoce do filho e as dúvidas sobre o crime até a dificuldade em aceitar o sobrenatural quando ele surge; e Holly, a detetive particular chamada para o caso, apresenta uma personalidade singular com transtornos psicológicos, inadequação a convenções sociais e uma habilidade incomum em descobrir informações banais supostamente impossíveis. Respectivamente, Julianne Nicholson, Ben Mendelsohn e Cynthia Erivo encarnam esses personagens, à sua maneira, encarando a aparição inesperada de um obstáculo grandioso sobre si mesmos.  

Como o entorno é o grande causador das jornadas tragicamente dramáticas dos personagens, a ambientação da série se revela uma dimensão crucial para o andamento da  narrativa. A direção de Jason Bateman nos dois primeiros episódios é decisiva para definir a assinatura visual do que se verá ao longo da temporada: uma áurea desconfortável, opressiva e soturna comparável a “True Detective” construída a partir das atuações, da brutalidade do assassinato, da insegurança quanto à capacidade policial de lidar com os desdobramentos do ocorrido, da trilha sonora com batidas ritmadas em intervalos regulares que geram grande incômodo e da fotografia que não oferece alívio emocional, mantendo-se formada por sombras, escuridão ou cores lavadas sem intensidade. Além disso, o elemento sobrenatural é inserido gradualmente com eficiência através de detalhes colocados pelo texto e pela mise en scène: as contradições enigmáticas do homicídio, uma estranha figura encapuzada próxima a locais em que alguém morre, pesadelos com um misterioso homem que fala atrocidades para a filha de Terry e visões de pessoas mortas.

Jason Bateman igualmente constrói um padrão para a tensão que se sente mesmo quando não é ele o diretor e sem depender exclusivamente de muitas cenas de ação. A inquietação é palpável para o espectador a partir do ritmo cadenciado; do drama criado sem excessos em planos gerais que investem no silêncio e em enquadramentos distanciados (eles indicam a presença de alguma ameaça por minúcias captadas pela câmera ou pela composição do quadro, como a insinuação recorrente de uma entidade maligna à espreita); e nos planos com poucos ou sem cortes em sequências de confronto físico ou tiroteios. Tais recursos não somente constroem a atmosfera precisa para a melancolia que acompanha os eventos retratados, como também assinalam a espiral de violência que pertence à mitologia da narrativa e pode ser vista na família do garoto assassinado.   

Assim como o peso do indecifrável contamina a ambientação daquela cidade da Geórgia e as figuras que ali estão, ele também afeta a história de suspense de detetive contada. Graças ao modo como andamento da investigação é mostrado, o desenvolvimento traz uma sensação de tragédia anunciada coerente porque as pistas se encaixam sem facilitações do roteiro, a inteligência de Holly é essencial para o esclarecimento do crime e de sua estranheza, respostas aos mistérios são oferecidas aos poucos e através da construção visual das cenas e não de diálogos expositivos. Outro mérito é balancear o ritmo dos episódios, evitando uma lentidão desinteressante e dosando a carga de drama/sufocamento para que o mistério não seja esquecido.

Portanto, é o equilíbrio entre o sofrimento dos personagens (produto de algo grandioso que os envolve inesperada e tragicamente) e o mistério investigativo (de início cotidiano, em seguida carregado pelo sobre-humano) que faz “The Outsider” acontecer. Dos conflitos comuns suscitados por um assassinato vem um universo fantasioso com regras próprias que atacam a inocência das crianças, se alimenta da morte e do luto e estende sua influência a todos ao redor. Entretanto, construir essa mitologia não faz a série esquecer seus personagens nem dispensar a preocupação de encerrar seus arcos, mostrando como ainda precisam enfrentar os males que os cercam vindos de qualquer elemento prosaico da vida. Inclusive, um simples arranhão.