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“TIGRES FUMEGANTES” – Começar pelo básico [47 MICSP]

Por trás dos clichês e da brandura de TIGRES FUMEGANTES, há uma direção com potencial. O que cabe questionar é em que medida a direção consegue ser uma virtude suficiente para o longa, considerando o roteiro limitado (ainda que premiado). A resposta não poderia ser outra: o potencial existe, o resultado, contudo, é discreto.

Hayoung é uma adolescente coreano-estadunidense cujos pais se separaram. Agora com a sua mãe assumindo um papel maior na sua vida, preocupada com seu futuro, ela coloca a garota em uma espécie de curso intensivo frequentado por jovens de famílias abastadas. À primeira vista, a situação parece ruim; ao amadurecer, Hayoung passa a interpretar o cenário que a cerca de uma forma diferente.

(© 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo / Divulgação)

O filme de So Young Shelly Yo é um coming of age tradicional quando considerados dois elementos. O primeiro é o arco narrativo da protagonista, que se deslumbra com a riqueza (mesmo antes de conhecer os novos colegas, ao “explorar” a casa da cliente do pai), mas percebe que há coisas mais importantes que bens patrimoniais. O segundo é a premissa de uma família que se rompe por força da separação dos pais, novamente em uma trajetória ordinária em que o vilão inicialmente elencado não é a figura vilanesca que aparentava.

Nesse sentido, o roteiro decepciona em razão da miríade de clichês dos dramas similares. As personagens são já conhecidas: a amiga com quem a protagonista tem um atrito, o “crush” que é belo apenas por fora, a irmã mais nova protegida da ruptura familiar e assim por diante. O arco de amadurecimento é clichê, sem nada realmente chamativo. Inicialmente, Hayoung escolhe a mãe, Umma (Abin Shim) como vilã da situação como um todo, já que o pai, Appa (Jun-ho Jeong), é a figura menos autoritária. Impossível ser mais previsível: aquela é rígida porque cabe a ela criar as filhas, este não é severo simplesmente porque não é compromissado com a criação, preferindo justamente exercer uma função que agrada mais as vontades da adolescente.

Jeong é ótimo ao desempenhar um homem que tenta camuflar o pesar sentido pela situação com sorrisos falsos e um quase coleguismo com Hayoung (Ji-young Yoo). Quando há o esperado confronto entre os dois, Yoo e Jeong vão muito bem, o problema é que a ocorrência da cena é uma questão de tempo. Talvez o problema seja com Hayoung, não por sua intérprete, cujo trabalho não é aquém do que se espera, mas porque não há nada que brilhe na personagem, ela é uma protagonista opaca. Nessa ótica, sua amiga Rose (Erin Yoo) tem uma história com muito mais potencial (por que não é ela a protagonista!?). O romance com Joon (Phinehas Yoon) é pouco crível para os dois adolescentes (um deles, fumante), dada a infantilidade com que é retratado, afinal, é de se esperar conversas e interações mais adultas que pequenas provas de amor.

Na direção, por outro lado, Shelly Yo não faz um trabalho desprezível. Existem, é claro, obviedades, como o cigarro como símbolo de autoconfiança e o banho representando o afeto oposto à banheira representando a solidão. Da mesma forma, a cena em subjetividade mental na qual Hayoung, em uma verdadeira catarse, enxerga a família feliz que não mais existe (se é que um dia existiu), é mais um clichê do longa. Entretanto, em alguns detalhes a mise en scène tem seu valor, com três destaques.

O primeiro é o emprego do reflexo como símbolo do distanciamento: ao ver a fotografia da família de Joon (o rosto de Hayoung aparece refletido), na conversa com Rose sobre o rapaz (a filmagem é pelo espelho), na piscina da casa de uma família rica (situação que não é a da protagonista) e, sobretudo, na conversa por telefone com Appa. O segundo é uma oposição de enquadramentos na relação de Hayoung com os genitores: quando ela chega em casa (após a festa), mãe e filha são filmadas em plano fechado dentro da sala, posteriormente, com o pai a ensinando a dirigir, o plano é aberto, situação que se inverte ao final (a cena em frente à parede e a do carro), traduzindo o modo como a própria Hayoung os enxerga. O terceiro e mais singelo está em uma cena na piscina, em que todos do grupo estão com os pés dentro da água, exceto a protagonista, deixando claro seu descompasso com os demais.

Os três destaques são, como mencionado, detalhes que revelam que Shelly Yo é uma diretora com potencial, cabendo lembrar que este é apenas o seu primeiro longa. Há muito a ser aprimorado tanto na mise en scène quanto, principalmente, no roteiro. Todavia, começar com clichês e obviedades significa dominar o básico, e o domínio do básico pode ser requisito para elaborar obras mais avançadas.

* Filme assistido durante a cobertura da 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo (São Paulo Int’l Film Festival).