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“TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE” – Reivindicação dos fatos

1976. É na folha em branco que Alan J. Pakula e William Goldman decidem começar TODOS OS HOMENS DO PRESIDENTE. Longos segundos de uma folha em branco, que só se revela como tal quando não mais branca e sim datilografada. É a presença da tinta que revela a tinta e a folha. Informação. A modernidade no cinema já é passado e eterno presente. A Nova Hollywood, talvez mais que qualquer outra indústria, já começava a, além de apropriar-se dos avanços, também descartar os embaraços dessa revolução, cujo resultado persistiria até os dias de hoje. E algo, ali, na virada dos 60, algo se perdeu. A modernidade tem seu custo. É o campo de certa impessoalidade, de certa instabilidade, de certa incerteza. “Todos Os Homens Do Presidente é sobre Watergate”. É o que muitos dizem, o que eu digo. Mas Todos Os Homens Do Presidente é sobre Woodward e Bernstein. É sobre a investigação de Woodward e Bernstein. É sobre a investigação de Woodward e Bernstein sobre Watergate. Isso acarreta muita coisa, mas mais importante: o filme não conta uma meia-história, mas conta uma das histórias. Não o Watergate da paranoia, mas o da convicção; não o da confusão, mas o da informação; não o do ceticismo, mas o Watergate dos fatos. Uma história de reivindicação da verdade, da certeza que se esvai na crise das interpretações.

(© Warner Home Video / Divulgação)

Qual é a lição que os jornalistas do Washington Post aprendem? (e deve haver lição, se se pretende reivindicar uma forma cambaleante, à época, de narrar). A cena mais memorável – no imaginário popular, ao menos – de Todos Os Homens Do Presidente não é protagonizada nem por Woodward nem por Bernstein, muito menos por um dos homens do presidente. Nela, uma das falas mais icônicas do cinema estadunidense também não é dita por nenhum deles. Quando Woodward vai ao encontro de seu informante anônimo no estacionamento, batizado por ele de Deep Throat, é ele, o homem recluso nas sombras, com a voz baixa, sob ares quase mitológicos que lhe diz acerca da investigação: “follow the money”. Este homem é o motor que impulsiona a história, não necessariamente porque fornece importantes pistas para a resolução do mistério, mas porque é a encarnação viva daquilo que o filme pretende elogiar, isto é, a informação – é, afinal, um informante, e sua frase certeira é a firme síntese da responsabilidade primeira de um novo homem pós-68: descobrir, resolver, distinguir, compreender, buscar a verdade, follow the money.

Pakula e Gordon Willis – fotógrafo dos fotógrafos, no auge de uma carreira de auges – reverenciam a película como Woodward e Bernstein reverenciam documentos, e em Todos Os Homens Do Presidente, essas duas matérias são um todo coeso. Um filme palpável, denso, ruidoso, em relevo, texturizado, carregado igualmente de fatos e de luz impressa, pilhas de papéis, mesas caoticamente ocupadas por cadernos e canetas e café e blocos de notas e bilhetes – em si, o filme: um documento, um registro imortal.

Após os breves segundos iniciais do filme, em que a data ”June 1, 1972” é datilografada, Pakula e Robert L. Wolfe, montador, decidem inserir, como sugeria William Goldman em seu roteiro, e antes mesmo que Dustin Hoffman e Robert Redford deem as caras, a imagem de arquivo do retorno de Richard Nixon da Rússia e sua entrada triunfal na Câmara dos Representantes. Mesmo que óbvio, algo que pouco importa a um filme reivindicatório, o uso do recurso é sintomático, evidência da fidelidade ao “baseado em fatos reais” e ao ímpeto de se inserir em um debate externo, no posicionamento político, no discurso dramático, na fé nos fatos, no mundo real. É sintomático, também, que o cenário mais corrente do filme seja, como não poderia deixar de ser, a redação do Post, poluída constantemente de corpos em movimento, do som ríspido dos datilógrafos. Willis e Pakula dão atenção especial aos vestígios da empreitada dos jornalistas. Em certo ponto, nos estágios iniciais da investigação, Woodward telefona para Howard Hunt, sem grandes expectativas, mas é surpreendido quando o homem atende a ligação. Impulsionado pelo pequeno sucesso, ele segue na busca por declarações oficiais sobre a misteriosa ligação entre Hunt e Watergate, e para cada informação recebida, há um contraplano diferente de recortes de seu caderno de anotações – são oito no total. É uma cena irretocável. O som contínuo da redação ao fundo, não mais do que dois planos (o caderno e seu dono), e a atuação de Redford dá conta de todo o resto, do tempo passado entre as ligações, do cansaço do trabalho, da magnitude das revelações feitas pelas fontes. Nunca uma série de ligações telefônicas foi tão eletrizante, incumbida de tanto suspense.

Já ao fim, o filme se despede no que poderia muito bem ser, arbitrariamente, um começo ou meio de história, antes do momento mais infame do escândalo de Watergate (o vazamento dos áudios capturados pelas escutas instaladas na Casa Branca), com a tomada de posse do segundo mandato de Richard Nixon, em janeiro de 1973, transmitida nas pequeninas televisões da redação do Post: Woodward e Bernstein, cada um em sua mesa, datilografam fervorosamente, as teclas soando como metralhadoras. Aos poucos, uma fusão povoa a redação, de súbito cheia de repórteres, papéis nas mesas e televisões nos balcões, Bernstein e Woodward no mesmíssimo lugar, horas de trabalho depois – tudo, do mais próximo ao mais distante, em perfeito foco. Um lentíssimo zoom se aproxima da dupla, até enfim se acomodar: a posse na televisão da extrema esquerda do quadro, Woodward de costas para ela, o rosto enterrado na máquina de escrever. Mais distante, Bernstein na mesma situação, também de costas para Nixon na televisão mais distante, à direita. Datilografam, datilografam, datilografam. Nos segundos finais de filme, uma montagem frenética, violenta, de uma série de manchetes gravadas no papel, protagonizadas pelos “homens do presidente”: as confissões e sentenças de Howard Hunt, Donald Segretti, Herbert W. Kalmbach, Jeb Stuart Magruder, Dwight Chapin, Herbert Porter, Richard Kleindienst, Charles Colson, Maurice Stans, John N. Mitchell, Bob Haldeman e John Ehrlichman. Enfim, a notícia das fatídicas fitas da casa branca, provando o envolvimento do presidente no escândalo, e a declaração de que não renunciaria. Por último, entretanto, a notícia, em 9 de agosto de 74, da renúncia de Richard Nixon.

A missão de Pakula e cia. é louvável. Mas restam angústias: mesmo nos últimos planos de Todos Os Homens Do Presidente, as manchetes datilografadas nas folhas em branco não serão jornais. São imagens projetadas, recriações da matéria, fraudulentas versões de documentos que imprimiam fotografias granuladas das cenas do mundo real, da posse de Nixon, do impeachment no congresso, da renúncia. As fotos nos jornais, os jornais na película, a película nos projetores, a luz na tela, o reflexo nos olhos, o filme na memória, a memória no futuro, frágil, memorada, recontada, esquecida, transmutada – o ciclo da matéria, do raio dos fatos à lembrança decomposta, a vida e morte das coisas do mundo. O cinema setentista redescobria a matéria, com seus poderes e perigos. Aqui, com Pakula, Goldman, Willis, Wolfe, a reverência. Eis o dever do filme, o dever do concreto, do registro, da evidência, da prova, a prova do corpo e seus movimentos, a prova da vida, a prova dos fatos. Datilografemos violentamente e sem descanso para que leiam, para que saibam o que descobrimos. Mas lá, a dúvida – questões deixadas para tempos outros, para outros detetives: que matéria? A matéria das fitas nas escutas, comprimidas para os televisores, transmitidas nacional, depois internacionalmente, re-comprimidas? Que vale essa matéria, enquanto informação, se emerge irreconhecível na saída da grosseira máquina das traduções? Que há na matéria moderna, afinal – o bojo tangível da vida –, de verdadeiro?

Autoria: Pedro Monte Kling