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“TRÊS VERÕES” – Versão tragicômica do Brasil atual

Fazer uma radiografia sobre o Brasil desde os tempos mais longínquos exigia refletir acerca das diferenças de classe. Mais recentemente, essas leituras sociológicas impõem também considerações sobre a revelação de escândalos de corrupção e suas consequências sociais. Um movimento assim envolve a comédia com traços dramáticos TRÊS VERÕES, capaz de transitar entre estilos distintos enquanto aborda os dilemas de um país desigual e contraditório do ponto de vista de uma mulher da classe subalternizada.

(© Vitrine Filmes / Divulgação)

A representação em questão é feita pela diretora Sandra Kogut ao guiar a narrativa pelo olhar de Madalena. A protagonista trabalha como caseira na mansão à beira-mar do casal Edgar e Marta, que oferece festas aos amigos entre o Natal e o Ano Novo. A funcionária precisa se dividir entre organizar a casa, gerenciar os outros trabalhadores e comprar um terreno para abrir seu próprio negócio, até descobrir que a ajuda do patrão pode lhe custar mais do que esperava.

Definir como ponto de vista central para o filme a perspectiva de Madalena não restringe a abordagem apenas na personagem. A partir dela, o universo das classes baixas é apresentado e desenvolvido, tendo como microcosmo principalmente a cozinha e como figuras representativas os demais funcionários da residência: a dinâmica entre a caseira, Vanessa, Elísio, Jonas e Cida é baseada no humor presente em indivíduos que se divertem nas redes sociais, convivem dentro de uma realidade própria com piadas específicas e brinca com costumes, problemas ou vícios dos ricos (comprar peças de decoração caríssimas e não tão úteis, ostentar com o conhecimento de Inglês e participar de negócios questionáveis). Sandra Kogut cria momentos íntimos e simples para gerar identificação com todos eles, concebendo planos mais longos e cômicos, como na cena em que preparam “quentinhas” na cozinha dos patrões para vender.

Embora os demais empregados tenham algum espaço, o brilho recai inevitavelmente sobre a Madalena interpretada por Regina Casé. A atriz tem a capacidade de sempre atrair a atenção da câmera, seja quando sua espontaneidade produz humor através de comentários jocoso, quando suas relações afetivas com Lira constroem momentos comoventes de respeito aos idosos, seja quando revela uma faceta dramática de sua vida em uma cena em que sustenta a emoção durante um longo plano fechado sobre si. Por fazer novamente uma empregada, Regina Casé poderia repetir a performance já feita em “Que horas ela volta“, mas sua sensibilidade a leva a construir uma personagem muito diferente – ao invés de ser a funcionária submissa e explorada, é uma mulher bem-humorada e forte que luta por seus objetivos sem abaixar a cabeça.

Por outro lado, o universo dos ricos é retratado com doses mais fortes de drama e tragédia sem tantos respiros de comédia. Além da leve caricatura atribuída ao modo de vida desnecessariamente luxuoso, Edgar, Marta e Lira são atormentados por seus próprios demônios: o primeiro foge de telefonemas comprometedores enquanto faz suas ligações profissionais misteriosas e cuida do pai idoso; a mulher sofre com a saudade de um filho que mora nos EUA e apenas aparece nas festas de fim de ano; já o senhor mais velho sente a morte da esposa e a necessidade de voltar para seu apartamento após descobrir os crimes cometidos pelo filho. Tais núcleos se encontram no caso de corrupção, que define uma atmosfera de revelação trágica a cada nova aparição do sujeito.

Após apresentar esses universos no primeiro ato, a produção se dedica às consequências das atividades ilegais. Entretanto, não é necessário contar em detalhes precisos o que houve, já que a cineasta opta pelo desenvolvimento original da trama e pela sutileza das sugestões (algo também visto em “O banquete“). Isso acontece na narrativa dividida em três períodos de anos diferentes, de dezembro de 2015 a dezembro de 2017, e na perspectiva central dada à Madalena, incapaz de compreender totalmente todos os fatos. A partir da fusão desses recursos, são oferecidas pistas para elucidar as ações criminosas: a passagem do tempo revela as razões para o cancelamento de um amigo surpresa, o abandono da casa pelos patrões, a operação de busca e apreensão da polícia, o uso do nome da caseira como “laranja”, entre outras.

O outro diferencial do filme é aprofundar nosso interesse pelos funcionários em geral e pela protagonista em particular, mesmo quando a corrupção já foi exposta. Da metade até o fim, a diretora aborda os impactos sofridos por aquelas pessoas por terem trabalhado para um homem acusado de desvio de dinheiro. Em princípio, elas apenas buscariam os salários ainda não recebidos, mais adiante, lutariam pela sobrevivência em uma sociedade capitalista desigual e classista – nessa segunda dimensão, a postura dos trabalhadores remete a “Parasita” com sua ideia de que a classe trabalhadora encontra estratégias possíveis para lidar com as desigualdades de classe. Há momentos cômicos resultantes da apropriação do mundo dos patrões, como a resposta de Madalena, ao ser acusada do roubo de uma roupa, dizer “não roubei. Eu herdei”.

Não é espantoso receber na atual conjuntura uma obra como “Três verões” para o cinema e a sociedade brasileira. Um país condicionado nos últimos cinco anos por políticas de combate à corrupção e pelas controvérsias quanto aos rumos da Operação Lava-Jato vivencia de perto a história contada por Sandra Kogut. Um Brasil nessas condições também reconhece a força da protagonista e o talento de Regina Casé para dar vida a ela. Porém, é expressivo receber uma narrativa que valorize o ponto de vista dos de baixo, tanto por serem afetados pela desordem econômica da corrupção quanto por se unirem para sobreviverem a uma realidade injusta.

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