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“TROCO EM DOBRO” – Comédia de ação no cotidiano

Parcerias entre diretores e atores/atrizes podem ser vistas aos montes na história do cinema. Peter Berg e Mark Wahlberg constituem um exemplo recente (e pouco percebido) de colaboração nessa linha, que rendeu produções como “O grande herói“, “O dia do atentado” e “Horizonte profundo – Desastre no Golfo” sobre eventos de grande magnitude sob a perspectiva do homem comum. Em 2020, chega pela Netflix o último projeto de ambos, TROCO EM DOBRO, que para o bem e para o mal se distancia da perspectiva temática trabalhada por eles anteriormente.  

(© Netflix / Divulgação)

Dessa vez, a dupla conta uma história tradicional dentro do subgênero da comédia de ação. Spenser é um ex-policial que sai da prisão após cumprir cinco anos de pena por agressão e começa a planejar um recomeço para sua vida. Enquanto não concretiza seus planos, ajuda o antigo treinador de boxe Henry e foge de sua exaltada mulher Cissy. Quando ele menos espera, se vê no meio da investigação da morte de dois ex-colegas e precisando do auxílio do lutador de MMA Hawk para levar os culpados à justiça.   

Por um lado, é positiva a decisão de Peter Berg de se reinventar e não seguir a mesma abordagem de seus três filmes anteriores, afinal assim o realizador pode apostar em novas tramas, estilos e temas. Por outro, algumas dificuldades transparecem na tentativa de criar uma narrativa com propósitos distintos dos usais para o cineasta, especialmente o desafio de lidar com os excessos de elementos do roteiro. São muitas informações e subtramas, nem sempre diluídas proporcionalmente ao longo das quase duas horas de duração: o protagonista na busca por recomeçar a vida como caminhoneiro no Arizona; o ódio despertado por ele dentro da corporação em virtude da natureza de sua prisão; a dinâmica cômica com Henry e Hawk ao morar junto com eles; a relação com a intempestiva Cissy que, ora o deseja, ora o detesta; e o mistério do assassinato do capitão Boylan e do agente Terrence Graham.    

Entretanto, as perspectivas antes desenvolvidas pelo diretor não são completamente abandonadas. Ele ainda trabalha como o cotidiano comum pode ser abalado, não por acontecimentos imponentes e famosos dos EUA, mas por manifestações de violência brutal ou explosões de humor fora das expectativas. Apesar de a brutalidade dos homicídios e das lutas corporais pertencer ao universo de corrupção, gangues, queima de arquivo e perigos sobre a força policial, falta maior harmonia com os momentos cômicos para que um não enfraqueça ou outro e para que as escolhas narrativas não pareçam apenas encenações artificiais de pouco impacto. É bem verdade que a violência apresenta efeitos mais contundentes quando aparece logo após passagens prosaicas do dia a dia: é chocante ver personagens agindo naturalmente em suas rotinas por um longo tempo (dirigindo, conversando ao telefone, observando a paisagem da janela do ônibus) até serem confrontados com a morte repentina.

Em outros instantes, a perturbação da normalidade pode ser notada pela comédia do absurdo estabelecida pelo texto de Brian Helgeland e Sean O’Keefe. Algumas piadas não atingem o resultado esperado por estarem desconectadas da trama central (as discussões e reconciliações do casal, a convivência infantilizada entre Spenser e Hawk e o desconhecimento do uso novas tecnologias como salvar dados na “nuvem”), contudo outras funcionam para evitar que a narrativa se leve a sério demais. Nesse sentido, o humor recorrente com cães sendo tratados como pessoas, o descontrole violento do protagonista quando contrariado ou desafiado a brigas sempre coreografadas de forma a provocar seus oponentes e a dinâmica entre Spenser, Hawk, Henry e Cissy são exemplos de comédia bem-sucedida – Iliza Shlesinger, Alan Arkin e Winston Duke estão à vontade em seus papéis bem-humorados, mas o destaque cabe a Mark Wahlberg e à sua capacidade de usar o arquétipo temperamental dos seus outros personagens para gerar humor.

As fragilidades em harmonizar os dois estilos tão diferentes são suavizadas pela montagem ágil que confere ritmo e coerência aos desdobramentos da trama investigativa. É assim que a abertura indica rapidamente o motivo para a prisão de Spenser, os riscos dentro da cadeira por ser ex-policial e sua liberação cinco anos depois; assim como também encadeia várias revelações sobre a conspiração em torno dos assassinatos e da corrupção policial (mesmo que, por vezes, fique a sensação de que seria possível simplificar a história). Embora o ritmo conquiste a atenção do espectador, que mal sente a passagem do tempo, a montagem não consegue organizar tantas subtramas e conflitos, fazendo como que elas sejam destoantes ou de menor importância (todo o arco envolvendo a esposa poderia ser suprimido sem maiores prejuízos, por exemplo).

Transitar entre a violência característica do gênero ação e as piadas de uma comédia é um desafio escolhido por Peter Berg para diversificar seu novo projeto em comparação com o restante de sua filmografia. Ainda que possua marcas próprias, “Troco em dobro” não dispensa a predileção do cineasta em abordar a trivialidade do cotidiano e o que pode colocá-la sob ameaça. Só que, dessa vez, sua parceria com Mark Wahlberg opta por uma experiência de divertimento simples, sem se levar a sério e com a consciência de que entreter ao longo de sua duração já pode ser suficiente.